PROSA NA ESTRADA
CONJUNTO DE CONTOS
DE VLADIMIR CUNHA SANTOS
PESCANDO O TEMPO
Publicado no livro Manhãs de Sábado, 2012, ISBN
978-85-7727-450-5
Manhã de sábado e os carros já estavam
estacionados na beira da barragem. O alemão dizia barage,
e soltava suas linhas num canto da barragem. Tadeu liderava com seu bote, Iraí
comandava a cozinha no acampamento improvisado com barracas de lonas. Depois
das redes e linhas colocadas, entre barulho das panelas e espetos, ouvia-se os
blefes e risadas do jogo de truco. Por vezes uma linha corria perto e eles
tiravam o peixe, geralmente traíra de 2 a 4 quilos. Limpavam e guardavam na caixa de isopor
com gelo. As cervejas não paravam de rodar nos copos furados. O dia todo.
Depois cesteavam. Depois jogavam. Conversavam sobre muitas e poucas coisas. Às
vezes uma visita de um vivente passante. Chimarrão, churrasco, linguiça,
galeto, café passado no pano e na cambona, no fogo de chão, com borra. Pão
dágua assado com alho e cebola. Cachaça pura, caipirinha, vinho de garrafão,
uísque, conhaque, mas a cerveja era a líder de preferência.
No decorrer do dia novos pescadores chegavam.
Darly trazia sua gaita de boca e fazia concertos na madrugada sem espantar os
peixes; dizia até que sua harmônica encantava os peixes que vinham cair nas
redes. Todos riam desta história que virava lenda aos poucos. E pela manhã
retirava-se o complexo sistema de redes, espinhais e linhas. Enchiam o bote de
traíras, limpavam, encaixotavam e comiam filés de peixe frito ou com molho e
batata.
Domingo retornavam no fim da tarde para a cidade,
para a rotina semanal de trabalho e cenas de família. O tempo não para nem
mesmo nos fins de semanas hoje lembrados. Caminhamos rumo ao nada, lentamente,
com nossas lembranças.
LEMBRANÇAS DE HONÓRIO
Publicado no livro Manhãs de Sábado, 2012, ISBN
978-85-7727-450-5
O
velho Honório, tossindo muito, arrastou seus pés pelo pátio de chão batido. Foi
até a beira das laranjeiras e apanhou algumas que estavam quase caindo de
maduras. Pegou uma faca feita de tesoura de esquila comprada no Uruguai, e
começou a descascar. Enquanto comia as laranjas do céu, as imagens de um
passado não tão distante lhe cruzavam pela mente. Estava cansado, judiado pelo
tempo, tossindo muito, com pulmão fraco e pouca vontade de fazer as coisas. Os
amigos apareciam de vez enquanto, amarravam o cavalo, faziam uma prosa cevando
mate quente, às vezes ficavam para um carreteiro com feijão, mandioca e
quibebe, poucas vezes ficavam para o pouso.
Honório lembrava das guerras da pampa, das revoluções contra
os chimangos, desde o fim do século 19, em 1893, quando era ainda um jovem mas
viu contar as histórias de degolas nas coxilhas do Rio Grande. Naquela vez os
republicanos liderados por Júlio de Castilhos tomaram conta do Estado. Foi um
banho de sangue. Depois veio a ditadura positivista do herdeiro de Júlio, seu
parceiro Borges de Medeiros. De tantas falcatruas cometidas nas eleições os
governantes do lenço branco causaram a revolta nos oposicionistas de lenço
vermelho. Outra revolução. Brigas de irmãos contra irmãos. Matanças, degolas,
homens, mulheres e crianças desesperadas. Invasões de cidades, prisões arbitrárias, um caos na pampa gaúcha, e lá no meio estava o
velho Honório, o chamado tropeiro da liberdade que passou a vida toda levando
gado para os frigoríficos de todas as bandas, o intitulado guerreiro Leão do
Caverá, general das tropas rebeldes da fronteira. Ele e seus comandados,
subindo e descendo a serra do Caverá, entre Rosário, Alegrete, Livramento,
Quaraí, levando tropas para as coxilhas de São Gabriel, Dom Pedrito,
Uruguaiana... uma região maior que a Palestina, em guerra civil, em 1923, época
da modernidade, os comunistas chegando no Brasil... Honório procurado para se
juntar aos comunistas, mas o velho disse não a Luís Carlos Prestes e seguiu sua
crença nas ideias de Assis Brasil.
Nestes meses combateu a ditadura de Borges e foi preso por Flores da Cunha e
levado para Porto Alegre de trem onde ficou preso numa ilha do Guaíba até fugir
um dia e voltar para sua liberdade na fronteira.
Lembrava das tantas mulheres que teve e perdeu, dos tantos
filhos que criou e viu morrer, lembrava das reuniões com fazendeiros e chefes
militares, das correrias e tiros no meio do campo de batalha, das trincheiras
em cercas de pedras, dos companheiros e inimigos morrendo com seus cavalos,
sangrando, manchando de sangue o verde dos campos sulinos.
Uma vez o seu ajudante chegou à beira da fogueira onde o
general Honório tomava um mate enquanto pensava em uma estratégia para o avanço
de suas tropas e falou ao líder maragato:
- General Honório, os nossos homens estão reunidos,
escolhendo quem vão degolar esta noite no acampamento. Têm muitos prisioneiros.
Honório levantou-se apressado, com os olhos saltando da
face, com o bigode em pé, e dirigiu-se até o grupo de soldados reunido ao pé de
outra fogueira. E falou em alta voz.
- Sob meu comando não haverá nenhuma degola! Todos que estão
presos serão entregues ao intendente do nosso lado que está esperando com
cadeia para estes desgraçados. E já disse. Falei, tá falado. Não admito ser
contrariado!
Os homens dispersaram e foram montar suas rondas. A noite
era fria e a lua estava cheia.
Honório voltava às suas recordações, descascava outra
laranja e assistia as galinhas e cachorros que corriam pelo pátio. As tosses
aumentavam. A fraqueza lhe colocou na cama novamente. Seria a última. Era 1930.
Getúlio Vargas preparava uma revolução a nível nacional, iria tomar o país das
mãos dos paulistas. Contava com apoio dos mineiros e dos paraíbas. Convidou o
velho Honório Lemes para chefiar uma divisão de revolucionários e embarcar num
trem rumo ao Rio de Janeiro. O velho doente agradeceu. Estava no fim. Morreu
antes da entrada triunfal de Getúlio e os revolucionários de 30 que tomaram o
poder da nação.
Milhares
de pessoas de toda a região foram dar o adeus ao guerreiro Honório que foi
enterrado em Rosário. Sua memória foi estampada em livros, jornais e seu nome
lembrado em ruas, escolas e centros de tradições gaúchas. Uma lenda do pampa
gaúcho. Um homem convicto da liberdade, sem conhecimentos teóricos da política,
mas que deixou uma célebre frase que até hoje merece reflexão: “Queremos leis
que governem homens, e não homens que governem leis!”
JOÃO DAS DORES BRASIL
Publicado no livro Manhãs de Sábado, 2012, ISBN
978-85-7727-450-5
Concorrerá ao Prêmio Nobel da Paz neste ano o papeleiro João das Dores
Brasil, que reside sob um viaduto desde o despejo de seu barraco adquirido por
um xerife de favela.
João das Dores Brasil nasceu trabalhando, esforçando-se para sugar o
leite da mãe que, além de cuidar de 5 filhos, cozinhava arroz e feijão numa
trempe instalada num barracão com teto de lona, na beira de uma olaria. Foi aos
dez anos que João das Dores conheceu o mar, quando sua família resolveu
construir um barraco numa vila de pescadores.
Muitos irmãos de João morreram no decorrer dos anos, não passando dos
primeiros meses de vida. Ele, sobrevivente, ajudou o pai a puxar as redes num
dos momentos mais saudáveis da sua adolescência.
Aos dezoito anos João das Dores Brasil foi servir a Pátria, ficando 10
meses e 8 dias recebendo ordens e
passeando pela nova e grande cidade que lhe varria os olhos. Quando quis voltar
pro mar, foi empregado; como ainda precisava de dinheiro, aceitou. Quando quis
voltar pro mar, acabou nos braços de uma mulher que lhe excitava o corpo e a
alma. Quando ainda pensava em voltar pro mar, teve que aumentar as horas de
trabalho para o sustento dos frutos da sua vida e do seu amor.
Quando quis voltar pro mar, João perdeu o fio da ilusão. Os filhos, já
crescidos, andavam pelo mundo e outros tinham desaparecido. A mulher, doente,
velha, esperava ansiosa a morte. O
dinheiro da aposentadoria de toda uma vida de trabalho para o desenvolvimento
da nação, não conseguia cobrir as mínimas necessidades. João vendeu o barraco e
passou a pagar aluguel para permanecer ali. Quando pensou no mar, a mulher
morreu. Quando pensou no mar, foi despejado.
Acabou num viaduto, desrespeitado e humilhado. Um velho enxergando a
cidade cinza e imunda, de uma noite colorida e violenta.
João das Dores Brasil nunca se rebelou ou foi inconsequente. Trabalhou
calado e entrou na fila dos aposentados. Na fila do SUS. Na fila do rango
popular.
João bebe sua cachaça, como vocação de brasileiro, e hoje não olha mais
para a bundas das ninfetas nas paradas de ônibus. Está quase cego.
Tudo que teve, agradece a Deus.
Ele sempre acreditou na lenda da existência de Deus; até mesmo nos
momentos das desgraças da vida. Pois este homem, que mediou muitos conflitos
entre as interrogações da sua ignorância X reação prática de um ser humano,
reivindica para si uma parte do prêmio Nobel da Paz, só assim, quem sabe, com
dinheiro no bolso, poderá realizar seu sonho: voltar pro mar – o gigante que
lhe viu crescer para desaparecer na multidão de uma sub-sociedade explorada
pelo capitalismo.
Que a paz esteja com João! Das Dores. Brasil.
VIAGEM – Anotações de um cidadão I
Publicado no livro Manhãs de Sábado, 2012, ISBN
978-85-7727-450-5
Quando passei na estrada pela frente do restaurante que foi o último em
que estive com meu pai antes dele morrer, pude ver sua imagem calada sentado
numa cadeira de ferro, na frente de uma mesa de ferro, bebendo um refrigerante
sem açúcar que eu trouxera de dentro do bar.
Enxerguei o velho pai calmo, calvo, enfraquecido pela doença, magro, com
os ossos da face saltando do rosto de olhos grandes, redondos e esverdeados
pela luz do dia ensolarado. Sua mente estava anestesiada pela medicação e seu
olhar vago mirava o movimento de caminhões e ônibus que chegavam e partiam do
estacionamento. Meu pai sentia que seus dias estavam acabando, seu sorriso
expressava o final de uma vida marcada por alegrias passageiras e dores da alma
por causa das perdas de seus pais e irmãos enterrados. Nestes momentos me
parecia que a alma existia mesmo. Um brilho estranho aparecia ao redor de seu
corpo frágil.
Quando o ônibus passou pela estrada em frente ao
restaurante de paredes brancas e mesas de ferro em sua varanda de costas para o
vale, pude ver meu velho pai grisalho que olhava o nada, o ar, o vento e os
pássaros que eternamente cantavam naquele lugar. Pensei na tese de meu amigo
espírita de que os mortos, ou desencarnados, estavam ao nosso lado, invisíveis
para nós, mas existentes em outro plano, outra dimensão. E se assim fosse, meu
pai estava lá mesmo. Mas também estava em vários outros lugares onde eu ia e
onde estive com ele em ocasiões que ele estava vivo.
O velho pai, agora fantasma, parecia estar me seguindo pela cidade e
pela estrada, com sua imagem de gestos calmos e vagarosos e olhar melancólico.
Esta impressão tive na avenida da praia, na beira do rio onde ele caminhara e
na casa onde viveu mais de 40 anos.
O ônibus foi indo, virei o corpo inteiro para poder ver pela janela meu
pai sentado na cadeira de ferro do restaurante de beira de estrada. Aquela fora
sua última viagem vindo do hospital da capital. Depois foi morrer
silenciosamente na sua terra natal ao lado dos filhos, da esposa e dos netos. Acho que ele não lembra quando morreu, estava
em coma, aparentemente não sofreu, não gemeu, não sentiu dor, estava medicado,
eu não vi, estava longe dele nesta hora extrema, eu estava em minha casa com
minha mulher, quando meu irmão telefonou para avisar que ele estava morto e que
deveríamos preparar o sepultamento. Foi um triste dia de início de ano. Uma
manhã nublada em
nossa vida. Minha irmã chorou muito esta despedida. Os amigos
foram velar o corpo inerte do velho que usava gorros e gostava de beber destilados.
Minha mãe suportou tudo com a frieza das mulheres traídas que viam neste fim a
sua libertação.
(5º CONTO) Título: DIÁLOGO DE ESTAÇÃO
Publicado no livro Manhãs de Sábado, 2012, ISBN
978-85-7727-450-5
- Tenho uma coisa pra te dizer.
- Diz.
- Estou grávida.
- Também tenho uma coisa pra te
dizer.
- Diz.
- Estou fora.
- Como assim?
- Estou indo para Manaus. Arruma um
homem pra criar este teu filho.
- Nosso filho.
- Teu filho. Está dentro de ti.
- Mas...
- Fui...
(6º CONTO) Título: COBERTOR DE LÃ
Publicado no livro Barulho do Ócio, 2011, ISBN
978-85-7727-359-1
Mauro quando saía de sua casa, um apartamento
térreo, escondia o computador no meio do cobertor. Viajava, trabalhava e
voltava e lá estava o notebook no meio daquele cobertor de lã crua que
herdou de seus pais.
Depois de um fim de semana na praia, Mauro chegou em casa e foi direto
ao cobertor de lã. Este não estava no lugar de sempre, nem o notebook. O
ladrão havia entrado pela porta dos fundos que dá ao pequeno pátio e revisou
toda a casa. Não gostou de nada. Abriu o guarda-roupa e lá estava aquela
relíquia de cobertor de lã herdada dos pais. Artesanal e grosso para enfrentar
o inverno. O ladrão resolveu levar somente aquilo. Abriu para sentir o cheiro
da lã e encontrou o computador. Era seu dia de sorte. Levou os dois. O cobertor
de lã, herança dos pais, e os arquivos de Mauro.
Agora, quando viaja ou apenas sai de casa para ir ao trabalho ou às
festas, Mauro deixa o novo computador bem à vista, em cima da mesa. Recuperou
os arquivos guardados num pendrive, mas o cobertor de lã, herança de
seus pais, nunca mais.
(7º CONTO) Título: CARRO PRETO NO PARQUE
Publicado no livro Barulho do Ócio, 2011, ISBN
978-85-7727-359-1
O carro preto estacionou. Vidros pretos. Não se enxergava
nada dentro do carro, nem vultos. Ninguém desceu do carro. Bruno observava
sentado no cordão da calçada, na sombra das árvores do parque onde morava. Suas
mochilas estavam escondidas nas copas de algumas árvores. Só ele sabia quais.
Espalhava suas tralhas para tentar fugir dos ladrões de lixo que viviam nas
ruas.
O carro preto permaneceu parado.
Bruno olhou para o carro, para o céu azul e os raios de sol atravessando as
torres da igreja. Não tinha nada para fazer. Não sabia fazer nada. Vagava pela
vida sem objetivo. Sentia-se um merda, esperando a morte chegar. Mas um jovem
com saúde esperando a morte chegar sem nada pra fazer, apenas olhar para as
árvores, catar lixo e vender pra comer e beber todo dia todo dia todo dia todo
ano todo ano todo feliz ano novo esperando a morte chegar.
Dentro do carro deve estar um
burguês feliz, um cara rico, bonito, com uma daquelas lindas loiras de saias
curtas e longas pernas amarelas. Dentro do carro deve estar um dono de empresas lucrativas, um cara com casas
nas praias e nas cidades importantes, quem sabe um político ou um artista
famoso da mídia ou um pensador consagrado acadêmico, dentro do carro um cara
bem melhor do que eu, pensava Bruno, chateado, com os olhos cravados no chão,
sem chão, sem teto, patético, sobrevivendo pra ver adiante um sentido de vida,
quem sabe. Quem sabe?
Abriu a porta. Bruno levantou os
olhos. Viu um casal de velhos saindo. Abriram a porta de trás do carro preto.
Tiraram um velho mais velho, lhe acomodando numa cadeira de rodas que chegava
na calçada conduzida por uma enfermeira. O milionário subia para sua cobertura
para morrer. Câncer nos ossos. Tratamento terminal. Branco. Olhos no fundo.
Olhou para os olhos de Bruno. Não aconteceu nada. Enxergou um vulto forte na
sua frente, distante, que não tinha nenhum sentido. O velho olhou para as
árvores do parque e subiu.
O carro preto partiu.
Por quanto tempo Bruno esconderia
suas mochilas nos parques? Quem sabe? Quem sabe?
(8º CONTO) Título: O CARTEIRO
Publicado no livro Barulho do Ócio, 2011, ISBN
978-85-7727-359-1
Entendi que uma
maneira de emagrecer em poucos meses era arrumar emprego no Correios do Brasil.
Entregar cartas a pé, todos os dias, caminhando pelas ruas da cidade, seria uma
maneira obrigatória de emagrecer. Me parecia que nunca tinha visto um carteiro
gordo. Acho que existem milhares de carteiros gordos pelo mundo. Deve haver até
uma associação de carteiros gordos em algum canto do planeta, mas comecei a
acreditar que era minha saída no momento, entrar para o Correio. Podia parecer
até uma fantasia bukowisquiana, de
que encontraria ali, além de histórias e aventuras, a saída para queimar
calorias e emagrecer. Mesmo assim, driblando preconceitos de atitudes, resolvi
me inscrever no concurso para carteiros que estavam me propondo. Não
significava que eu deveria ser carteiro para o resto da vida. Era apenas uma
opção, uma alternativa momentânea para
os próximos anos. Pensando assim organizei a documentação e me inscrevi no concurso
público. Passei. Fui chamado. Apresentei-me e comecei a trabalhar.
Os primeiros dias foram um terror.
Nunca mais esquecerei. Minha rota era um sobe e desce de ruas que às vezes eu
parava para respirar sentado. Cheguei até a tirar os sapatos e vi que era
descompostura para a empresa. Aguentava o calor nos pés, bravamente. E
realmente emagreci. Perdi no primeiro mês 5 quilos. Uma boa média, calculei. Em
um ano daria 60 quilos, pela aritmética. Eu só queria perder uns 20 quilos.
Pensei no caso. O salário não era lá estas coisas mas a categoria era
considerada elite no meio da rapaziada pobre. Era emprego no governo federal.
Faça chuva ou faça sol e o salário está sempre lá, garantido no banco.
Estabilidade então era o bom do negócio. Era só andar na linha e garantir uma
boa aposentadoria, afinal a vida é assim mesmo.
De quebra surgem algumas
aventuras.
No dia Internacional das mulheres, 8 de março, fiz uma
homenagem a este ser que, juntamente com o dinheiro, é a razão de viver de nós
homens. Naquela manhã busquei no meu banco natural de memória centenas delas,
belas mulheres que meus olhos já viram... amigas, vizinhas, colegas, artistas,
primas, secretárias... os orgasmos foram dedicados como homenagem especial do
carteiro gordo para todas as mulheres do
mundo. Apesar de parecer ridícula a cena, me senti bastante feliz, e isso era o
que me importava. Tudo é invenção neste mundo. Até felicidade inventamos.
Tentei de tudo para perder mais peso. Caminhei durante 5
meses após a jornada de trabalho nas ruas e perdi 7 quilos. Parei
definitivamente de jantar e perdi mais 7 quilos. Tudo na conta do mentiroso.
Parei de caminhar uma semana e voltei a jantar "socialmente". Voltei
também aos 90 kilos. Para mim o importante era não ultrapassar a barreira dos 100 kg . Se chegasse a este
marco estaria fodido. Colesterol muito alto. Diabetes. Canos entupidos.
Derrame. Infarto. Morte certa e prematura. Comecei a beber chás e vinho tinto e
diminuir as porções, porém deixar de comer... nunca. Era o meu vício. Estava
condenado.
Levantei. Calcei os tênis, vesti o abrigo e voltei a
caminhar. Pelas ruas da cidade, pelas calçadas, pelo asfalto, subindo e
descendo, olhando os prédios, as árvores, as pessoas, as vitrines. Depois de
dois meses me acostumei e sempre tinha que caminhar à tardinha, e assistia ao
pôr do sol caminhando. Encontrava no caminho outros gordos e gordas, parceiros
em busca de melhor saúde, de melhor oxigenação do sangue... enfim em busca de
vida.
Tudo muito simples: caminhar só uma hora das 24 horas do
dia, todos os dias. E aos poucos as gorduras começaram ceder. Os exames
melhoraram.
Pensei: Estou salvo!
Até um dia morrer.
(9º CONTO) Título: MADRUGADA ETERNA
Publicado no livro Barulho do Ócio, 2011, ISBN
978-85-7727-359-1
Lúcia serviu o mate para
Ionara e ficou olhando a roupa colorida da amiga, enrolada em uma manta
vermelha e sob uma toca preta. Fazia 1 grau negativo naquela madrugada no
interior do mundo. Os olhos de Lúcia vagavam pela sala enorme, sobre os móveis
e roupas espalhadas pela casa. O silêncio da noite era quebrado pelo barulho
dos grilos irritantes. Antes de entregar a cuia para a amiga, Ionara sentiu o
tremor do celular no bolso, depois o barulho suave de uma canção anunciando uma
chamada. Atendeu e era quem ela esperara durante toda a tarde, aflita,
esperançosa. No outro lado da linha uma voz grave informou que Patrício estava
chegando. O próximo avião proveniente da capital deveria aterrissar na
cidadezinha ao amanhecer. Patrício, enfim, estava retornando de sua longa
viagem pelo exterior. Teria o que contar. Ionara sorriu para a amiga e relaxou.
O namorado estava retornando ao convívio dela. Queria matar a saudade lhe
beijando os lábios, depois acariciando os cabelos e o corpo inteiro, até ser
devorada pela fúria sexual de seu parceiro. Fazia mais de 1 ano que ele estava
longe, estudando, mas agora voltava. O pai dele avisara.
Lúcia começou a arrumar a
casa para esperar Patrício. Começou juntando as roupas caídas e passando uma
vassoura no tapete de lã crua esparramado no piso de madeira da sala, sob uma
mesa de centro feita em vidro. Depois veio a organização do quarto para o
casal. As mulheres riam de felicidade e de ansiedade. Lúcia sentia a mesma
alegria da amiga. Também queria rever Patrício, ver seus braços, suas pernas,
seus cabelos e olhos. Queria arrancar um sorriso de sua boca e um beijo de seus
lábios. Porém tinha que esperar o momento oportuno, depois de Ionara, com
certeza. Mas saberia esperar, com aflição, é claro, pois somente ela sabia que
era a segunda na fila de Patrício. Aguardava.
Amanheceu na cidade e o
avião não aterrissou ali. Ionara e Lúcia, que pouco dormiram, passaram a noite
inteira esperando o desejado, o amado, o bem-vindo, o lindo. O pequeno avião
mergulhou no pântano com seus 16 tripulantes. Só foi retirado da lama cinco
dias depois. Ionara e Lúcia, desesperadas, reconheceram o belo corpo do rapaz
que voltou para a terra natal para ser velado e enterrado, para desaparecer da
vida real, para viver eternamente no imaginário apaixonado das amigas. Duas
viúvas precoces. Duas mulheres que passariam o resto das suas vidas mergulhadas
em lembranças da infância e da juventude, quando corriam, as duas, de mãos
dadas com Patrício pelas florestas e campos floridos na primavera. Cada uma com
seu segredo. Segredos de desejos não realizados.
(10º CONTO) Título: CANTANDO A ALDEIA
Publicado no livro Barulho do Ócio, 2011, ISBN
978-85-7727-359-1
Oscar disse que viria e veio
mesmo. Estacionou seu carro verde na frente da minha casa numa manhã de
sexta-feira. Gordo, de óculos, com problemas no coração. Veio a Rosário para
relaxar a mente e aliviar sua doença coronária. Veio a Rosário para visitar os
amigos que aqui fez nos anos 80. 28 anos
depois. 55 quilos a mais. Veias entupidas. Sorriso no rosto. Um excelente
tocador de violão. Canta os hinos do Rio Grande e da América Latina. Fumava
muito. Parou de repente. Agora fala e canta. Desceu de seu Renault e me
telefonou. Saí na sacada e lá estava Oscar. Sorrindo, como sempre, estampando
felicidade.
Esta seria uma história que
planejei e não escrevi até agora. Passou o verão, Oscar não veio, perdeu a
oportunidade de fazer uma viagem com passeios, cavalgadas e caminhadas pela
serra do Caverá, pelas margens de areias brancas dos rios Santa Maria e Ibicuí
da Armada. Oscar perdeu de ouvir os poetas da Gauderiada da Canção Gaúcha e as
batucadas das escolas de samba Praianos, Bambas da Orgia, Vim Pra Ficar e
Embaixadores do Ritmo; e dançar, pular, balançar sua pança nos clubes
Comercial, Caixeiral, União, Campestre, Professores, Sub-tenentes. Viver o
fevereiro inteiro. Perdeu de colher uva e beber um vinho no Rio Velho e comer
bergamotas e laranjas sem sementes nas coxilhas úmidas que são nosso oceano
verde.
Março foi engolido por abril e
este por maio de mais um ano. E Oscar continuou em Porto Alegre com sua rotina
cotidiana. Nós em Rosário, com nosso dia a dia sem hífen. Assistindo o início
das obras das grandes barragens na bacia do rio Santa Maria, para salvar nossos
rios e dar sustentabilidade para maior desenvolvimento agrícola e industrial à
nossa região pampiana. Oscar na capital,
vendendo e tomando remédios. Ele trabalha num laboratório como distribuidor.
Também é marketeiro. Escreveu um livro que vai editar. Seu coração batendo e
descompassando. Oscar amando. Amando amando a filha alada. Namorando as
namoradas. Sentei. Repeti os mestres: cantei minha aldeia amada. Depois me
entreguei à estrada.
(11º CONTO) Título: O BEIJO
Publicado no livro Barulho do Ócio, 2011, ISBN
978-85-7727-359-1
Parece que o mundo tinha parado naquelas tardes quentes do Arraial. O
mar batia na areia e o sol queimava as peles expostas. Franceses, holandeses,
argentinos, italianos e outros estrangeiros misturavam-se ao povo brasileiro
para uma comemoração global: o carnaval. E de máscaras ou de caras limpas,
perambulavam pelas ruas estreitas, pelos corredores de hotéis e pousadas, pelas
praias encantadas.
Ana Rita era mais uma pessoa neste pedaço de mundo, buscando
alegria, diversão, querendo conhecer novas pessoas e outras emoções. Seu cabelo
pintado de verde e sua pele bronzeada a destacavam neste cenário apoteótico de
coqueiros e falésias. A música ritmada baiana contagiava quem passava pelas
barracas em festa. Coquetéis com frutas e cachaça, cerveja, maconha, drogas
sintéticas e cocaína rolavam a qualquer hora entre adolescentes e adultos. O
Arraial virava uma Sodoma contemporânea, uma Babilônia do século XXI. E no meio
desta efervescência havia espaço para o descanso, a tranquilidade e a harmonia
espelhadas pelas famílias que se deleitavam com seus casais e crianças na beira
do oceano esverdeado.
Ana Rita sentou-se na areia quente e observou a cena
inusitada de um jovem índio pataxó dançando com seu tacape. Saltava sobre as
pequenas ondas e fazia caretas de esforço. Gingava e sorria quando sentia-se
observado. Percebeu os olhares da menina de cabelos verdes e foi ao seu
encontro. Pegou Ana pela mão e a convidou para a dança, ali, na beira do mar.
Não havia música, apenas na cabeça do índio, mesmo assim a menina de 19 anos
fez uma ginga, sorriu e voltou a sentar-se na areia, rindo. O índio sentou-se
ao seu lado e começou a falar no dialeto indígena. Ela disse que não entendia
nada. Ele riu e falou em português. Então se entenderam. Ele ofereceu o tacape
para Ana e pediu dinheiro pelo objeto. Ela disse que não tinha dinheiro naquele
momento, mas ele insistiu. Perguntou de onde ela era. De São Paulo, respondeu.
O índio olhou para o céu azul e apontou para as
nuvens brancas. Disse que seus avós estavam lá, mas que seus pais estavam ainda
na terra.
Nisso saíram do meio da mata vários índios menores, com os
corpos pintados, dançando e cantando, alegres por terem encontrado o irmão mais
velho. Ana pegou na bolsa sua máquina de fotografia e quis bater umas fotos dos
índios. Eles taparam os rostos com as mãos e disseram não. Somente se ela desse
algum dinheiro. Ela tornou a dizer que não tinha dinheiro no momento. O índio
maior disse que ela poderia pagar com beijos e ela riu. Riu muito. Então pegou
um indiozinho e o beijou no rosto. Ele vibrou. Rita beijou os demais
indiozinhos que se deixaram fotografar. Fizeram poses para a menina branca de
pele bronzeada e cabelo verde como a floresta tropical.
O índio maior chegou bem perto e pediu com gestos, colocando
os dedos nos lábios, um beijo na boca. Ela riu e disse que não. Ele ofereceu
então o tacape. Ela riu novamente e encostou seus lábios marrons nos lábios do
índio. Ele a beijou com carinho, depois com a força de um amante. Ela
correspondeu com ternura e um fogo subiu pelo seu corpo até que os dois se
abraçaram e continuaram o beijo agora sensual. Os índios menores aplaudiram,
riram e rolaram na areia. Os dois se desgrudaram e o índio maior entregou o
tacape para Ana que ficou paralisada, sem saber o que dizer. Pegou o tacape e
agradeceu. Depois pediu para que todos posassem para uma última foto. Disparou
a máquina 3 vezes, enquadrando o rosto do índio maior na quarta foto. Eles
deram meia-volta e correram para a mata na beira da praia. Sumiram.
O carnaval continuou por mais alguns dias. Ana brincou muito
com seus colegas de excursão. Namorou Jorge, seu colega de faculdade, e fizeram
sexo sob a luz da lua prateada, na beira do mar. Ao chegar em São Paulo ampliou
a foto do índio pataxó que colocou numa moldura rústica e pendurou na parede de
seu quarto. Beijo como aquele, jamais tinha dado, comentou com a irmã, e
prometeu retornar ao Arraial para reencontrá-lo. O tempo passou e o índio
morreu sem esquecer aquela tarde. Ana Rita um dia foi assaltada e assassinada
na Avenida Paulista.
(12º CONTO) Título: DORMIR EM PAZ
Publicado no livro Barulho do Ócio, 2011, ISBN
978-85-7727-359-1
Nani foi morar em um apartamento na rua da praia
que era um verdadeiro assombro devido ao movimento dos moradores. Sua porta
ficava na entrada do prédio, na frente das caixas de correspondência, e todos
que ali entravam faziam barulho insuportável. A porta de vidro batia a cada
entrada, os habitantes conversavam alto pelo corredor e faziam barulho ao verem
suas caixas. A zoeira começava às 4 e meia da madrugada quando o morador
entregador de jornais ia trabalhar e ao sair batia a porta. Depois a prostituta
que chegava às 5 horas do trampo dava mais uma batida. Em seguida eram os
outros moradores que saiam para o trabalho às 6 da matina e davam sonoras
batidas naquela porta que estava estragada. A cada batida Nani gritava,
indignada com o barulho constante que a acordava no meio da noite. Reclamou
para a zeladora, para a síndica, mas de nada adiantou. E para completar, os
vizinhos do apartamento de cima caminhavam com sapatos barulhentos a noite toda
tentando acalmar um bebê que chorava muito quase toda a madrugada. Isso foi
provocando um estresse galopante em Nani que dormia pouco, com interrupções, e
tinha que trabalhar às 7 da manhã, de segunda a sábado. No domingo, quando
podia dormir mais, o barulho do prédio, escutado em seu apê 101, térreo, o
primeiro do prédio, continuava durante toda a manhã. O que fazer? O que fazer?
perguntava Nani para suas colegas de serviço. Esta é a vida urbana, diziam,
rindo.
Certo dia Nani resolveu mudar esta
situação. Comprou um revólver e cada morador que batia a porta ela abria a sua
porta e calçava o barulhento. Volta, dizia ela, com os olhos em chamas, e
segura esta porta, fecha bem devagar, sem soltar, sem fazer barulho. Quando o
bebê começou a chorar ela subiu no 2º andar e calçou os pais da criança. Coloca
uma bucha de pano na boquinha desta criatura, ordenou.
A síndica tomou uma providência. Chamou a polícia
e Nani foi presa e internada. Na clínica não tinha tanto barulho e Nani
conseguiu, enfim, dormir em paz.
(13º CONTO) Título: NOTÍCIA DO DIA
Publicado no livro Barulho do Ócio, 2011, ISBN
978-85-7727-359-1
Geraldo morreu. Finalmente uma boa notícia ao
amanhecer desta terça-feira para Geraldo. Sua morte, enfim. O corpo está
apodrecendo num caixão de madeira nobre. Se existe alma, esta deve estar
encaminhando-se para o céu -se existe céu- pois Geraldo era uma pessoa boa.
Humaníssimo. Atencioso. Amava os seus e tinha compaixão pelos miseráveis e
desgraçados desta vida terrena. Digo e escrevo que é uma boa notícia porque
Geraldo rezava todas as noites para morrer, me confessou. Sofria muito. A
diabete tinha lhe tirado as duas pernas. A hipertensão o ameaçava diariamente.
Fez 8 cirurgias para combater tumores malignos que lhe atacaram por vários
anos. Isto não era vida. Geraldo sentia dores e mal-estar. Pelo menos agora não
sofre mais. Apagou-se. Sua máquina parou de funcionar. Zerou. E ao apagar-se
Geraldo pensou: todo mundo vai apagar também um dia! Risos e vômitos.
Desligou-se da tomada da vida. Esta é a verdade absoluta. Geraldo é passado.
Poucos lembrarão dele, como eu. Alegrou muita gente com sua arte. Viveu de
arte. Amou antes a arte sobre todas as mulheres. Pelo menos viajou pelo
planeta, não ficou preso e enraizado, amou e foi amado, sentiu o sabor da
felicidade. Mas por que este sofrimento para morrer? Ó Deus -se existe Deus-
por que esta dor nos ossos de Geraldo? Alguém há de entender este castigo sobre
uma pessoa tão boa de sentimentos?
Geraldo deixou uma enorme obra.
Admirável.
Inteligente.
Nas estantes.
(14º CONTO) Título: CAMINHADA
Publicado no livro Barulho do Ócio, 2011, ISBN
978-85-7727-359-1
Nas caminhadas que realizo diariamente, no calçadão da
praia ou nos parques, observo a natureza e penso e penso e penso muito, não só
na minha agenda cotidiana, mas também nos acontecimentos que envolvem nossa
existência. Dia destes, caminhando com um amigo diabético, na tentativa de
baixar a taxa da glicose, falávamos do amor e do sexo, coisas que vão além da
racionalidade e da emoção humana, atravessam as fronteiras da natureza e
enxergamos nos animais e no próprio cosmos. Parece que tudo é sexual, os
pássaros se unem, os animais diversos procuram companheiros sexuais e o orgasmo
não é um privilégio do bicho homem. Parece que tudo que existe, se move, tem
vida, procura parceria para seu desejo ou senso de preservação da espécie.
Porém nós, humanos, conceituamos este ato e o transformamos em paixão, amor,
escravidão de um ser pelo outro, dependência psicológica, razão de existir e
até ato violento de posse. Por este sentimento muitas mortes acontecem e no fim
tudo desaparece.
Também na caminhada falamos de
negócios, política, corrupção administrativa, esportes, literatura, negócios,
mulheres, construções, música, eventos, comidas, viagens e vários assuntos do
momento e do passado, pois História é um prato cheio para se desenvolver a
mente e comparar os tempos idos com os atuais.
Enquanto a pele sua, o cabelo
ensopa, o sangue ferve e os músculos se contraem, nossa mente pensa e pensa, e
nossa língua fala e fala.
Depois um alongamento relaxa o
corpo que então entra no carro e volta para a rotina diária, aos afazeres da
vida moderna. Mas fica o saldo de que a missão está cumprida, dia a dia,
acreditando em algo, fazendo por todos e principalmente por nós, afinal a vida
é única.
Será que é única mesmo ou haverá uma nova chance de vida
em outra dimensão, em outro plano que a física não explica? Isto também é
assunto para novas caminhadas e assim seguimos vivendo, de caminhada em
caminhada, avançando.
(15º CONTO) Título: REALIDADE
Publicado no livro Barulho do Ócio, 2011, ISBN
978-85-7727-359-1
Foi tudo muito rápido, porém com muita dor. Apenas dois
minutos.Os irmãos Bil e Li jantavam num barraco na Vila Mixuruca com a mãe e a
irmã quando ouviram batidas na porta de madeira. A mãe foi atender, Bil colocou
a mão no revólver e Li ficou com os olhos arregalados quando três homens
invadiram a casa dando gritos e agarrando os dois irmãos. Foram arrastados para
fora do casebre pelos cabelos e os braços e pernas. O revólver de Bil foi parar
nas mãos de um dos invasores. As mulheres gritavam por socorro, mas os vizinhos
ficaram quietos, apenas ouvindo a gritaria, com medo, não queriam se meter, não
queriam morrer também, pois chegara a hora dos filhos de Dona Maria.
A irmã chorava e prometia se prostituir para pagar as
contas dos irmãos. A mãe implorava pelos filhos e dizia “não matem, moços, meus
filhos, eu vou pagar tudo que eles devem a vocês, eu juro, eu faço faxina todos
os dias e trago dinheiro pra vocês...”
Não
houve clemência; os irmãos foram jogados no chão embarrado e começaram os
tiros. Dez tiros. Cinco balas para cada um. Furos e sangue nas cabeças, nos
ombros, nos peitos, nas pernas, nos testículos... nos corações. Os irmãos ficaram
dilacerados. Os homens correram até suas motos estacionadas num campinho
próximo da vila. Sumiram. “Estes não vão calotear mais ninguém”, gritaram. Os
vizinhos só saíram de seus casebres quando apenas o choro da mãe e da irmã
fazia eco. Elas deitadas sobre os corpos ensanguentados, inconsoláveis. Um
vizinho ligou chamando a polícia que chegou uma hora depois e recolheu os
corpos com o carro do necrotério. No chão ficou uma poça de sangue. Sangue de
quem estava devendo para os traficantes de crack, para os vendedores de cocaína.
Os irmãos tinham uma sociedade e revendiam no centro da cidade as drogas que
tanto mal fazem para outras gentes doentes. Os irmãos tinham passagens pela
polícia. Haviam até matado. Foi acerto de contas, mais uma vingança, execução
na Vila Mixuruca. Quando acordei para tomar meu café, assisti a matéria no
telejornal da manhã. Eles tinham apenas vinte e poucos anos.
(16º CONTO) Título: MOACYR NO CÉU
Publicado no livro Barulho do Ócio, 2011, ISBN
978-85-7727-359-1
Porto Alegre continua viva. As cidades não morrem, depois de construídas
são eternas, apenas crescem e se transformam. Mesmo um terremoto ou maremoto
que tente destruir alguma cidade, ela sobrevive. Os habitantes se unem e
reconstroem. E assim nasce a segunda-feira nublada de 28 de fevereiro em Porto
Alegre, agora sem os passos tranquilos, sem o olhar profundo e pensativo do
escritor porto-alegrense Moacyr Scliar. No domingo, 27, ele deixou de existir
entre os vivos, entre seus familiares, entre seus amigos, entre seus fãs. Foram
73 anos de muita vida e realizações, estava no seu ano 74, e durante esta
existência publicou 74 livros. Foi o escritor gaúcho que mais publicou livros.
Começou em 1962 e só parou de publicar em 2010. Deve ter deixado alguns títulos
inéditos, tal era sua produção literária que somou 49 anos. Podemos dizer que
Scliar escreveu durante 50 anos e só parou com a doença e a morte.
A Feira do Livro de Porto
Alegre não terá mais as brilhantes palestras do ficcionista mais criativo dos
pampas nos últimos anos. Moacyr não caminhará lentamente com o braço por cima
de sua esposa Judith pelas ruelas da Praça da Alfândega, entre as bancas de
livros, cumprimentando e atendendo gentilmente todos aqueles leitores e
escritores que queriam se comunicar com ele. Sorria, posava para fotos, dava
entrevistas e aconselhava jovens autores.
As façanhas dos guris do
bairro Bom Fim nos anos 40 foram bem narradas por Scliar, e quando desço a Rua Pinto Bandeira e entro na
Voluntários da Pátria recordo os seus personagens. Contos realmente fantásticos.
Romances inesquecíveis. Diverti-me muito lendo o romance Centauro no Jardim,
que tem todos os ingredientes de uma boa ficção. Os Voluntários me
comoveu pela sua narrativa poética. São tantas as obras deste trabalhador das
letras que escreveu uma média de 1,5 livro por ano de carreira. Por mais de 20
anos escreveu crônicas no maior jornal do RGS, a Zero Hora, e colaborou em
vários jornais de todo o país, como a Folha de São Paulo. Viajou por todos
rincões do estado levando seus livros para bibliotecas, participando e
incentivando feiras de livros, dando palestras em escolas e entidades
literárias. Mesmo sendo um médico por profissão, foi, acima de tudo, um
escritor por opção. Amava a literatura e incentivava quem escrevia.
Estive com este mestre da
ficção algumas vezes: numa feira do livro em Rosário do Sul , num
bate-papo com escritor na Palavraria, importante livraria do bairro Bom Fim, na
capital, e durante a Feira do Livro de Porto Alegre em 2010, quando
conversamos, ocasião em que lhe autografei meu livro Outras Vidas e
depois recebi por e-mail comentários a respeito de meus contos. Na Palavraria
entreguei a Scliar minha Antologia Poética Só Poesia. Ele era uma pessoa
especial, atencioso, respondia e-mails de qualquer mortal. Um coração bom que parou
de bater fisicamente, mas uma alma que deve estar realizada por ter cumprido
sua missão de escrever, desvendar mistérios, fazer rir com seus textos
criativos, bem humorados e com as mensagens humanistas que introduziu através
de seus personagens.
Porto Alegre continua
viva, pulsando, crescendo, mas sem a presença física deste imortal das letras,
inesquecível escritor que adentra o céu para fazer companhia a Jorge Amado,
Érico Veríssimo e tantos outros escritores que contaram histórias sobre as vidas
diversas neste planeta.
(17º CONTO) Título: MINICONTOS DE BORDO
Publicado no livro Barulho do Ócio, 2011, ISBN
978-85-7727-359-1
VISTA
Gustavo passou 35 anos de
sua vida trabalhando e economizando para comprar um apartamento no 10º andar,
com janelão de frente para o Lago. Assistia o pôr do sol mais bonito do planeta
todas às tardes. Certo dia começou uma mega obra com colunas de concreto e aço.
Em alguns meses a vista de Gustavo foi coberta por uma torre de vidro com 20
andares, bem na frente de sua janela. O pôr do sol mais bonito do planeta
acabou para Gustavo. O brilho da lua prateando o lago nas noites inesquecíveis
acabou para os olhos de Gustavo. Ficou apenas o reflexo da imagem do prédio de
Gustavo nos vidros negros da torre. Um sonho de 35 anos frustrado.
PRIMAVERA
No meio do ruído agitado de um Porto nem sempre Alegre, canta a sabiá,
chamando seu sabiá pra amar na copa das árvores. Pirruí pirruí pirruí pirruí
pirruí...
VOLTANDO
DA PRAIA
O bom
guri chegou da praia e na rodoviária, atrasado, correu com sua mochila para
pegar outro ônibus. Um bobalhão gritou: pega ladrão! E o povo saiu atrás do
guri. Uma confusão. Prenderam o guri. Mas quem foi assaltado? Quem é a vítima?
Não existe. O guri sofreu esta humilhação, perdeu o outro ônibus e voltou para
casa indignado. O bobalhão gritão ria encostado num pilar da rodoviária
agitada.
INTERVALO
Ele
olhou para a professora e disse: desculpe-me pelos meus contos. Isto não é
minha obra literária completa. Tem coisas bem piores ainda. Ela riu. Fechou o
livro e recomeçou a aula. Meus paradigmas são meus enigmas.
(18º CONTO) Título: NO TAPETE
Publicado no livro Barulho do
Ócio, 2011, ISBN 978-85-7727-359-1
Renata e Fredy dormiam enquanto o sol invadia a
sala do pequeno escritório no centro da cidade. Roncavam suavemente ao som do
ventilador e dos carros que cruzavam na rua em frente ao prédio imponente da
antiga alfândega. A chuva não estava prevista para aquele sábado de verão,
apenas muito sol e calor. Renata e Fredy não fizeram amor, chegaram da noitada
cansados e caíram no colchão instalado no piso do escritório. Com a TV ligada
pegaram no sono rápido e sonharam seus sonhos não lembrados no outro dia.
Renata, como Fredy, veio do interior morar na capital onde sonhava em se
dar bem nos negócios, arrumar bom emprego, ter vida digna, moradia, saúde e
amor. Sim, todos querem um amor para viver, para amar e ser amado, e Renata e
Fredy não eram tão diferentes do resto da humanidade.
No sonho não lembrado de Renata aparecia uma casa
enorme com tapetes persas, móveis caros, bebidas importadas, farta comida,
empregadas, carros disponíveis e crianças felizes correndo pelos corredores.
Ela, sendo mulher, tendo seu instinto maternal, sonhava sempre com suas
crianças que só existiam nos sonhos. Crianças bem vestidas, limpas, indo para a
escola. O rosto do marido não aparecia nos sonhos, pois ainda não estava
definido. Quem sabe nem teria marido pois Renata poderia ser uma mulher
independente, destas que fazem carreira profissional e produzem seus filhos sem
precisarem de esposos. Porém Renata não tinha este espírito independente, era
uma mulher fraca, vulnerável, dependente, preguiçosa, sem estudo, sem emprego,
e no auge de seu sono abraçava-se em Fredy.
Fredy também sonhava seus sonhos não lembrados, e neste sonho ele era um
produtor de espetáculos, artistas famosos e principiantes dividiam o palco
montado por ele, arrancavam aplausos e gritos de delírio da platéia empolgada
com o som das guitarras e teclados e baterias. E lá estava Fredy, sorridente,
satisfeito, contando na mente o dinheiro que ganhara dos patrocinadores para
armar este show do sonho, vendo as belas mulheres dançando na frente do palco
com suas roupas justas e sensuais.
Fredy dormia agora sem roncar, ao lado de Renata, coitada, perdida na
vida, sem ter pra onde ir, deitada no colchão, esperando pelo pau grosso de
Fredy, esperando pelo abraço forte de Fredy ou de qualquer homem, de
preferência negro, pois ela adorava os africanos, mas estava ali, deitada no
colchão de Fredy, um branco sonhador.
E assim seguiram, dormindo, sonhando, até às 4 da tarde, quando
acordaram de seus sonhos não lembrados. Fredy, com a cara amassada de ressaca,
Renata com a cara amassada de ressaca. Olharam-se com desprezo, murmuraram
palavras indescritíveis, se suportaram até o momento anterior do sonho, queriam
agora sumir um da frente do outro, não tinha rolado nada de emocionante entre
eles, apenas o sexo animal em outro dia banal, sem carinho, sem ternura, apenas
com a tesão dos bichos, e depois do gozo natural veio o desprezo, a vontade de
fugir um do outro, o nojo daquele esperma derramado pelas coxas. Não era amor.
Nunca seria. Tinham a certeza disso e seus olhos expressavam esta sensação.
Correram para o banheiro. Um foi para o vaso e outro para o chuveiro.
Nem se olhavam mais. Fora uma relação breve. Apenas orgasmos ocasionais.
Trocaram números de telefones mas nunca se ligaram. Fredy seguiu sua vida e
seus sonhos, Renata seguiu sua vidinha fútil, sem perspectivas, correndo atrás
do nada, vendo o seu tempo passar na Terra.
Fredy recolheu o colchão, arrumou o escritório para trabalhar em seus
projetos e Renata vestiu-se lentamente pensando no que iria fazer. Teria pela
frente mais uma noitada, coitada, estava cansada, mas precisava sobreviver.
Pediu uns trocados para o parceiro, para pegar um ônibus, disse, até a casa de
uma tia, disse, onde iria dormir a noite inteira e quem sabe o domingo inteiro,
ou talvez a vida inteira. Pegou o dinheiro, beijou friamente o rosto de Fredy,
agradeceu a parceria e partiu deixando seu cheiro na sala. Nenhuma fala, nenhum
olhar romântico, nenhuma promessa de voltar a se encontrar.
Na rua Renata foi indo, devagar, olhando os
prédios do centro histórico da cidade histórica. Não havia nenhuma tia, não
havia nenhuma casa para dormir, apenas o vazio da alma, da vida vadia, até
encontrar outro Fredy disposto a uns momentos de prazer que lhe tirasse da
eterna solidão. De preferência que fosse um Fredy negrão, de pele cor de
chocolate, um escarlate cheio de paixão que bancasse sua vida de ilusão. E foi
indo, quadra após quadra, passando pela praça, pelas avenidas... até que um
taxista parasse em sua frente perguntando onde ela queria ir. Ela respondeu que
não tinha dinheiro e nem destino. Ele sorriu, abriu a porta, mandou entrar e
arrancou o carro em direção a qualquer lugar. Era um loiro. Renata teria que
aguentar.
(19º CONTO) Título: ANÔNIMO
Publicado no livro Outras Vidas,
2010, ISBN 978-85-7727-246-4
Fernando descia a rua agitada, congestionada de
gente que ia e vinha, levando e trazendo suas aflições e angústias, pessoas
sérias, pessoas sorridentes, o tempo todo falando nos telefones celulares, sem
perceberem os caminhos, seguindo, automaticamente, desviando-se uns dos outros,
atrás de algo já programado, a rotina louca da cidade grande na retina de
Fernando, caminhando, observando...
“Compro ouro! Compro ouro!” gritava um velho de
gravata e de casaco surrado.
“Empréstimo fácil, sem consulta ao Serasa e SPC! desconto
em folha de pagamento e outras opções de crédito, vamos pegar, minha gente...”
gritava uma mulher distribuindo panfletos.
“Aparelhos dentários, consultas sem compromissos, arrume
seus dentes com a gente”... convidava uma jovem sorridente.
E Fernando ali, caminhando, pensando intensamente no dia de
amanhã, nas contas a pagar, no que fazer com os filhos crescendo e precisando
trabalhar, precisando de renda e ocupação, essa era sua preocupação momentânea
enquanto descia a rua da praia, ia dar lá na beira do lago, do braço de mar, de
ilhas e ilhas... Fernando era mais uma ilha naquele universo, naquela rua,
naquela multidão de anônimos caminhando, com olhos abertos mas fechados,
ouvindo o som da cidade, os gritos dos vendedores, os rumores dos carros e
ônibus... “Compro ouro” , “Empréstimo fácil”... Fernando não tinha ouro
e nem crédito, Fernando só tinha o olhar distante e o caminhar, nem emprego
tinha mais, nem aposentadoria... sobrevivia das faxinas da esposa... Não sabia
se queria viver mais...
Sentou e chorou na beira do cais.
(20º CONTO) Título: O RETORNO
Publicado no livro Outras Vidas,
2010, ISBN 978-85-7727-246-4
Martins acordou de um estado de coma de 20 anos. Sua primeira visão foi
do teto branco, das roupas brancas, da sua magreza, dos canos e fios enfiados
pelo seu corpo. Olhou para o lado e estava uma mulher jovem, bonita, com
cabelos amarelos. Era sua filha; ele não sabia naquele momento em que retornava
para a vida, para o estado consciente, 20 anos depois de um grave acidente de
automóvel.
Os ossos quebrados e a pele cortada voltaram ao normal, mas o cérebro
não. Ficou dormente por 20 anos. Martins encontraria um novo mundo ao seu
redor. Novas pessoas, novas tecnologias, telefone celular, computador portátil,
mas o ser humano ainda lutava contra violências, corrupções, desigualdades
sociais e ganâncias.
No primeiro dia foi muita alegria. Familiares e amigos conversaram com
Martins. Os médicos pediram calma e retomaram exames e novos tratamentos para
ele voltar a caminhar e ter vida normal. O pior tinha passado. Aos poucos
Martins recebia informações do mundo ao seu redor. Falou num celular com
parentes distantes. Viu a filha manusear o notebook e ter o mundo e
todas informações aos seus dedos através da internet. Surpreendeu-se ao saber
que o ex-operário sindicalista que tinha sido preso pela ditadura militar agora
era o Presidente do Brasil. Mais ainda quando soube que o povo norte-americano
elegeu um presidente negro para dirigir os EUA. Muitas novidades chegavam e
surpreendiam.
Martins sentiu a ausência dos pais. Tinham morrido. Martins chorou
muito. 10 anos depois das mortes por câncer. Sentiu a falta da mulher
carinhosa. Esta tinha ido embora e formou uma outra família. Sobrou a filha,
com 29 anos, agora “doutora”. Sobraram os irmãos... Martins pediu perdão pela
sua ausência, pois seu acidente tinha sido uma imprudência.
Martins
pediu para ver o mar.
(21º CONTO) Título: PULGAS NA
CAMISA
Publicado no livro Outras Vidas,
2010, ISBN 978-85-7727-246-4
Jorge e Maira casaram na Igreja. Ele de terno e gravata,
ela de véu e grinalda. O pai da noiva pagou a festa. Ela teve 3 namorados
antes, mas este foi especial. Foram 4 anos de namoro, paixão e noivado; depois
3 anos de ilusão e exploração. Jorge saía cedo para o trabalho e voltava tarde
para casa. Chegava sempre cansado e às vezes embriagado. Ele fazia sexo para
saciar sua tesão e marcar presença como maridão. Ela transava para cumprir seu
papel de esposa, pois a paixão tinha desaparecido no decorrer dos anos. E assim
seguiam a vida e diziam que eram felizes. Tinham até carro. As panelas, eletrodomésticos,
móveis, louças, lençóis, toalhas... ainda eram do enxoval. E nas férias iam à
praia.
Jorge diminuiu suas sessões sexuais em
casa. Estava sem tesão e perdia a paciência com Maira. E ela todos os dias
lavava roupas, arrumava e limpava a casa. Fazia comida e esperava Jorge vendo
suas novelas na TV de plasma.
Um dia a casa caiu. Jorge arrumou
outra. Uma mulher diferente, mais louca na cama, dizia aos amigos no bar.
Maira, humilhada, voltou para a casa dos pais. Chorou mas superou o episódio. Voltou
a estudar. Foi trabalhar. Conheceu novas pessoas e voltou a amar. Estava
vivendo novamente. Nos fins de semana ia ao parque ou viajava para a serra.
Estava mais bonita que a puta do Jorge. Mas ela não queria concorrência, tinha
nova pessoa em sua vida feliz.
Maira disse aos pais: vou viver com
esta pessoa que estou amando! Vou me mudar. E carregou suas malas. Porém
prometeu um dia apresentar a nova pessoa. O dia chegou. Maira apresentou Márcia
aos familiares. Márcia era meiga, carinhosa, trabalhadora, inteligente... mas o
preconceito imperou. Foram meses de assimilação pelos pais e irmãos. Viram que
assim Maira era realmente feliz, seu rosto estava brilhante. Maira e Márcia,
sem véu e gravata, casaram e pagaram a festa.
Jorge, com a outra, levou um chifre na testa.
(22º CONTO) Título: O FIM DO
MUNDO
Publicado no livro Outras Vidas,
2010, ISBN 978-85-7727-246-4
A cidade era pequena. Aquele pedaço de mundo era pequeno. Distante das
capitais. Ruas e ruas na beira de um rio. Entre as coxilhas do pampa do sul.
Homens e mulheres, felizes e/ou infelizes, marcavam épocas no tempo infinito
naquele lugar bonito de campos verdejantes, cerros ao longe e casas baixas.
Sady Menezes era um vivente neste ambiente, que transitava entre o
comunismo e o cristianismo. Amava Cristo e cultuava os dogmas de Lênin.
Na sua época a União Soviética era uma referência de seu ideal, mas sua
paixão era o modelo chinês de disciplina e planejamento. Acreditava nos números
dos Stalinistas e tinha um amor enrustido por Mao.
Pregava em suas palestras, encostado no portão do nº 986 da rua General
Canabarro, que a 3ª Guerra Mundial seria o fim do mundo. Bombas atômicas
destruiriam as cidades e o planeta e a humanidade. Apenas uns sobreviveriam
para a nova vida ao lado de Deus e Seu Filho Jesus Cristo que desceria outra
vez na Terra. Sady falava com uma convicção!
A qualquer crise política na Europa ou nos EUA ou no Japão, ele
anunciava o fim do mundo.
Passaram-se os anos, as décadas e o mundo que acabou foi o do Sady.
Encontrado morto numa manhã cinzenta.
Veio o desmatamento, degelo, aquecimento global, a China virou
economicamente capitalista, acabaram com a União Soviética e a Iugoslávia de
Tito (Ah, como Sady elogiava Tito!), a Alemanha comunista cansou da pobreza e
passou a ser capitalista com a queda do muro de Berlim, e apenas a pobrezita
ilha de Cuba do Fidel Castro e familiares, juntamente com a tirania da Coréia
do Norte, ficaram com a
bandeira do comunismo. Não entregaram as fichas, mesmo depois
do fim do mundo de Sady que foi sepultado no cemitério municipal de Rosário do
Sul, ao lado de seu irmão Gentil e seus pais João de Menezes e Maria Lemos de
Menezes, famílias do pampa.
Mas Sady tinha temor a Deus e acreditava que Jesus Cristo era mesmo
filho de Deus que veio ao mundo em forma de homem para ensinar à humanidade os
conceitos do amor, do perdão, do livre arbítrio. Sady acreditava na Bíblia.
Fumando seu cigarro no portão, pegando sua vianda na Churrascaria
Planalto, Sady conversava com quem parava na frente do portão. E destilava seus
conceitos e observações a respeito de tudo. Lia de cabo a rabo o Correio do
Povo e adorava comentar a política internacional.
Na Copa do Mundo e nas Olimpíadas, torcia pelos russos e chineses. Era
contra os americanos.
Vivia de aposentadoria mínima e
mantinha relações sexuais com uma velha prima que o visitava, levando uns
trocados.
Um solteirão, sem filhos, que passou no mundo e deixou marcas ao pregar
pra muita gente suas ideias de comunismo e cristianismo, fim do mundo e 3ª
Guerra Mundial.
O mundo que acabou foi o seu, de casa velha de madeira, velhos móveis
mofados e objetos antigos, um mundo de lembranças dos pais e irmão vendendo
bebida na chamada rua da Cancha, caminho da Swift Armour, um mundo de
ilusões... e nós, guris da Quadra 7 da Canabarro, crescemos esperando chegar a
3ª Guerra Mundial e a vinda de Cristo pela 2ª vez. O fim deste mundo cheio de
guerras e violências.
Viramos novo século (XXI) e novo milênio (3º da Era Cristã) e essas
profecias pregadas por Sady não aconteceram até os dias de hoje.
Crescemos, envelhecemos, morremos... e nada do fim do mundo.
Sady
foi embora desta vida, e nós continuamos vivendo, viventes, sobreviventes dos
acontecimentos históricos, nas nossas cidadezinhas ou nas metrópoles do
planeta, até o fim do nosso mundo.
(23º CONTO) Título: ÁGUAS DE
NOVEMBRO
Publicado no livro Outras Vidas,
2010, ISBN 978-85-7727-246-4
Quando Igor chegou na
cidade só se falava em enchente. O rio subiu 7 metros , já tem 600
pessoas desabrigadas, os barcos a motor dos voluntários navegavam nas ruas do
subúrbio invadido pelas águas de novembro, recolhendo gente, roupas e móveis
possíveis. A praia sumiu. Os bares da orla ficaram inundados. A população
ficava atenta ao movimento do rio, se subia, se baixava, e os políticos carregavam
povo em seus carros para os abrigos coletivos instalados nas escolas. Só se
falava na enchente. Fotos da enchente. Filmagens da enchente com suas águas
sobre as paredes e placas e postes desaparecidos. Nos bancos, na prefeitura,
nos bares, nas barbearias, nas casas o assunto era o rio subindo. Crianças das
vilas alagadas chorando a perda de seus brinquedos atirados nos pátios e que a
água levou. Mulheres lamentavam as perdas de móveis e eletrodomésticos.
Ativistas realizando campanhas de arrecadação de alimentos, colchões, roupas,
telhas, objetos, através das emissoras de rádios, jornais locais e entidades.
Militares do Exército ajudando retirar famílias e móveis. O assunto era a
enchente quando Igor entrou na cidade com seu carro preto. Em pleno novembro de
2009. Todas cidades da região alagadas e com milhares de flagelados. As
vizinhas cidades da Argentina e do Uruguai também com enchentes. Lavouras
inundadas. Gado morrendo afogado. Telhados voando com ventos. Queda de energia.
Computadores e máquinas queimando. Raios matando pessoas. Árvores caindo. E
chuva caindo, caindo, por dias.
Igor
estacionou na praça central. Café Brasil. O velho Café Brasil intacto. Sentou
olhando as árvores da praça e o céu chumbo, e pediu um expresso. Com adoçante!
Só depois iria ver os prejuízos que a família teve com esta enchente.
(24º CONTO) Título: O DIA DO
CASAMENTO
Publicado no livro Outras Vidas,
2010, ISBN 978-85-7727-246-4
Uma garoa caía naquela manhã de domingo na Serra do Caverá, quase na
fronteira do Brasil com o Uruguai e Argentina.
Uma jovem era preparada pela mãe e
pelas tias para o momento do casamento. Vestido sendo costurado no corpo.
Cabelo bem lavado. Perfume. Véu. Aias e pajens. Alianças de ouro gravadas com
as iniciais dos noivos e a data do fato. Estava pronta para celebrar o amor.
Estava pronta para perder a virgindade tão bem guardada por 18 anos. Sua mente
pegava fogo. Era uma mistura de tesão com medo. Enfim chegava a hora de
descobrir o pecado e a fraqueza da carne humana. Iria passar as núpcias na
cidade do Alegrete. Nunca tinha saído da fazenda no Caverá. Ali nasceu pelas
mãos de uma velha parteira, se criou brincando no campo e nos bosques, aprendeu
a ler e fazer contas na escola de campanha, e sua mente viajava com os romances
e revistas que a professora trazia de Rosário do Sul. Passou a juventude
ajudando a mãe e as tias nos serviços domésticos da fazenda onde o pai era
apenas o capataz de um poderoso homem da elite regional. Foi ali, aos 15 anos,
que flertou com um dos peões da fazenda. Moreno alto, musculoso, jovem como
ela. Domador de potros. Bom no tiro de laço. Campeão de gineteadas. Com emprego
fixo e carteira assinada. Tinha até um chalé no Caverá, na beira dos Três
Cerros. E passaram três anos num namoro vigiado, com apenas alguns beijos
escondidos e abraços mal traçados.
Um jovem preparava-se para o momento de
seu casamento. Lustrava a melhor bota e a guaiaca com aquela fivela de prata
que herdou de seu pai. Passava o lenço vermelho que lhe orgulhava pela atitude
revolucionária de seus antepassados que fizeram levante contra a ditadura no
Estado. Tomou banho perfumado. Só pensava em tirar a roupa branca da noiva e beijar seus seios e pernas e braços. O carro
do filho do patrão levaria os noivos para um hotel no Alegrete. Ele passava
brilhantina nos cabelos negros. Encilhava o cavalo baio companheiro velho, e se
aprontava para o almoço festivo do casamento.
O padre estava no altar da capela da
fazenda. A chuva apertava. Aos poucos os convidados chegavam, ensopados, e se
aglomeravam no galpão onde foram montadas mesas para a festa. A carne de ovelha
e boi aos poucos ia para a churrasqueira. As saladas e o arroz com charque eram
preparados pelas mulheres dos peães. Os pais dos noivos chegavam de carroça e a
cavalo. Ensopados.
O noivo vestiu seu poncho e galopou
pela coxilha. Com o chapéu de abas largas protegia seu rosto e cabeça dos
pingos fortes da chuva. Os trovões e relâmpagos assustavam seu cavalo baio
companheiro velho. Ele olhou para o céu cinzento e agradeceu a Deus pela sua vida
e pela mulher que iria desfrutar. Queria muitos filhos pra criar.
De repente um raio. Uma luz. Um fogo.
Um choque. Um grito. Um fim. O peão e o cavalo baio companheiro velho caíram na
grama molhada e eletrificada. Um silêncio pairou na pampa. Só se ouvia o
barulho da chuva caindo nos telhados. E o noivo não chegava.
Um grupo de amigos, assustados com
aquele raio que caiu perto, foi dar uma volta pelo campo nas proximidades da
fazenda. Lá encontraram o noivo morto pela natureza. Foi um Deus nos acuda.
Desespero e choro no Caverá. Noiva inconsolável, pais entristecidos,
companheiros emudecidos.
O corpo foi velado no galpão preparado
para a festa do casamento. A noiva desmaiou várias vezes. O padre encomendou a
alma do gaudério que morreu sem realizar seu sonho de amor. O patrão ficou
sabendo da história em seu escritório na capital. O enterro saiu abaixo de
chuva e o noivo foi enterrado num cemitério ao pé dum cerro do Caverá.
Sete anos se passaram e a noiva
encontrou um novo e vivo amor. Rezou muito para que não chovesse no dia do
casamento.
(25º CONTO) Título: DIÁLOGO
Publicado no livro Outras Vidas,
2010, ISBN 978-85-7727-246-4
- Bom dia, professor!
- Bom dia, professora!
- Senta aí. Vamos conversar um pouco.
- Eu estou cansado, preciso mesmo
sentar. Dei aula até esta hora.
- Bebe alguma coisa?
- Não. Ou melhor, bebo sim. Uma água.
- Viu a reclamação do pessoal com
relação ao concurso público?!
- Pois vi.Os colegas reclamam que as
provas foram muito difíceis. Dissertativas. Impossíveis de responder.
- O problema é que existem muitos
colegas despreparados, sem cultura geral ampla, desinteressados...
preguiçosos... temos que admitir.
- Mas nem todos são assim.
- Uma grande parte sim.
- Isto é resultado de uma política
irresponsável que formou uma legião de despreparados para "preparar"
nossos jovens. Faltou planejamento dos vários governos.
- Em parte tens razão. Muitos
professores foram ingressando em escolas
sem concurso, por nomeação política de padrinhos, por contratação
emergencial, sem passar por cursos e testes de qualificação profissional. Tem
gente que não tem vocação, não gosta de educar, mas está na profissão porque
tem que pagar as contas.
- Mas tem gente interessada, dedicada,
estudiosa, com metas de ensino... amam o que fazem...
- Estes devem ser a maioria...
- Será?
- Ó! Bateu. Vamos voltar para a sala de
aula.
- Vamos à luta, enfrentar nossos alunos
que também são desinteressados, só querem brincadeiras, namoros e outras coisas
mais. Temos que transformá-los!
- É verdade. Tchau! Boa aula.
- Tchau! Até o próximo intervalo.
(26º CONTO) Título:HISTÓRIA
COMUM DE UM VELHO FELIZ
Publicado no livro Outras Vidas,
2010, ISBN 978-85-7727-246-4
Olhei o prato do velho que atravessava o restaurante e pensei: arroz branco,
feijão preto, batata frita, pastel, bifes, peixe frito e apenas alguns pequenos
tomates. Tudo isso para o almoço de um velho aparentando 75 anos de idade.
Imaginei toda aquela química diluindo-se
no organismo do velho, as gorduras saturadas viajando no sangue,
entupindo as veias.
Meu amigo Massa lembrou que toda esta fartura falta para muitas crianças
e velhos abandonados pelo sistema econômico. É verdade, concluí, e segui
comendo minha salada variada encharcada de azeite de oliva, bebendo meu suco e preparando-me
para degustar as frutas do buffet. Eu, com apenas 45 anos, me cuidando com a
alimentação.
O velho comeu com satisfação aquela pratarrada e serviu-se novamente,
agora acrescentando salada de batata com maionese e almôndegas com molho.
Pediu outra garrafa de guaraná açucarado e depois foi aos doces. Serviu
pudim, sagu, torta de bolacha, creme de leite sobre tudo e deliciou-se olhando
as imagens dos gols da rodada na televisão pendurada no refeitório.
Arrematou toda aquela comilança com um cafezinho bem açucarado e na
saída acendeu um cigarro para pegar a rua e caminhar lentamente.
Não se preocupava com a saúde, não tinha medo da morte, entendia que já
tinha vivido muito, criado filhos e netos, viajado a trabalho e a passeio por
muitos lugares do Brasil e até do mundo. Esteve no Paraguai, Argentina,
Uruguai, Chile e Estados Unidos a serviço de uma companhia de transportes de
cargas que lhe aposentou aos 65 anos. Dizia aos amigos que estava no saldo da
vida, sem mais ilusões.
Voltava para casa, dava uma sesteada até às 16 hs e depois lia jornais e
correspondências até às 18h quando ia
encontrar gente no boteco da esquina do parque. Ali contavam histórias,
escalavam os times, profetizavam quem ganharia o campeonato, olhavam o passar
das mulheres e bebiam algo alcoólico para entorpecer a mente até o sono chegar.
Sempre beliscando alguns salgadinhos no cair da noite.
Quantos dias foram assim para este e milhares de velhos da nossa velha
cidade? Quantos dias seriam assim até a morte inevitável um dia chegar.
Este viúvo vivia assim em
sua solidão irreparável. Num pequeno apartamento de 1 dormitório que ele
limpava, organizava e passava seus dias. Às vezes era convidado para o
churrasco dominical na casa de um filho ou neto que lembrava do velho. Suas
manhãs eram de sono, até às 10h quando
recomeçava o ritual de viver, banho, escova de dente, café, levar as roupas na
lavanderia, escolher o restaurante, esperar o dia de ir no banco receber a
aposentadoria, controlar as despesas, jogar canastra com os amigos até altas
horas da madrugada...
Estava feliz.
Confessava-se um vencedor. Nenhuma tragédia familiar. Vida simples e comum. Um
orgulho: todos filhos formados em universidades federais e com profissões e
bons empregos.
Massa, o meu amigo
professor de cavaquinho, disse-me: este cara jogou bola no Internacional nos
anos 60. Ou melhor, foi no Grêmio Porto-alegrense onde era zagueiro, e dos
melhores!
- Ah não! Este cara foi
vereador ou deputado nos anos 70, se não me engano, remendou Massa, olhando
o velho sair do restaurante na Avenida Borges. Massa estava confuso. Também,
acabara de completar seus 80 anos e ainda gostava de sorver um vinho barato nos
botecos.
Vimos o velho algumas
vezes ainda naquele bar, com seu prato cheio e sua cara despreocupada com a vida.
Um semblante sério de poucos mas sinceros sorrisos.
Depois não o vimos mais.
Passaram-se meses e até comentei com o Massa.
Teria morrido, solitário,
numa noite ou manhã qualquer?
Teria se mudado para um
outro bairro ou para uma casa na praia?
Estaria num hospital,
moribundo, com as coronárias entupidas
de gorduras?
Estaria num asilo com
outros velhos?
Estaria vivendo com uma
mulher, bem feliz, em outra cidade, cheio de amor pra dar?
A pergunta não teve nunca
resposta até nossos dias atuais. O velho solitário e feliz tinha sumido de
nossas vistas e não aparecia mais no restaurante da Avenida Borges, para encher
seu prato e beber um guaraná gelado.
Segui comendo meu arroz
integral, saladas, legumes e frutas; bebendo meus sucos e chás, porém sem ter a
certeza de que viverei tantos anos como o velho feliz do prato cheio, como o
velho professor Massa vivia: degustando seu vinho e tocando seu cavaquinho.