quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O HOMEM QUE XINGOU DEUS           (Wlady)

Naqueles tempos, início do século XX, os patriarcas colonos desejavam ter muitos filhos machos, homens, e que fossem saudáveis e fortes, para o trabalho na lavoura, na produção da família, para dar mais lucro e rentabilidade. Mas Nono Marcos, um italiano de 93 anos, ao morrer, pediu perdão para Deus por ter xingado o seu Criador do céu e da terra muitas vezes na sua juventude. Pediu perdão para a mulher velha companheira de sete décadas por ter praguejado contra ela, contra seu ventre. Disse, no leito de morte, que se arrependia por isso.
Quando casaram, em seguida programaram o primeiro filho. Seria um italiano de olhos verdes e cachos loiros. Com o pé grande e as mãos fortes, imaginava Marcos. Na beira da lareira, bebendo um vinho caseiro, discursava para Natália que tricotava em silêncio, saindo vez que outra para reparar nas panelas no fogão à lenha.
Chegou o dia do parto. Correria das mulheres, irmãs e mãe de Natália. A parteira chegava e tirava a criança de dentro da mãe. Choro de saudável. Palmada. Risos. Marcos aflito na sala. “Seria machinho?” se perguntava. A resposta foi: “uma linda menina”. Marcos não sorriu. Queria um trabalhador pra ajudar na produção. Viu aquela guria se criar nas voltas da mãe dela, na cozinha, fazendo bolos, pães, doces, cuidando da horta e estudando. Mas não desanimou. Passados dois anos chegou o dia do segundo parto. Correria no quarto, panos, bacias, parteira, choro de criança, aflição na sala e a notícia: “Uma linda menina, seu Marcos.” “Puta que pariu! Outra inútil! Vai te a merda, Deus!” praguejou Marcos que saiu batendo portas e fora beber seu garrafão de vinho. As mulheres respeitaram a tristeza do pai da criança, a decepção mais uma vez na mente daquele homem. Ficaram em silêncio mas comemoraram com sorrisos e alegria a chegada de mais uma menina. Cresceu na cozinha e na escola. Ajudava a mãe e passava horas com a professora.
Marcos não desistiu. Veio o terceiro parto. Seria um forte italiano gaúcho. Rezou, mesmo depois de ter xingado Deus, e pediu um macho para a família, sentia-se solitário no meio do parreiral. Correria novamente, bacias e panos, choro de criança, silêncio, veio a parteira, séria, sem jeito, dizendo: “Uma linda menina.”
“Não acredito. Mas o que foi que eu fiz, Deus, para merecer este castigo?” berrou Marcos, chutando a mesinha de centro da sala. “Mais uma mulher nesta casa. Que bucho falhado desta mulher. Vou desistir.” Marcos chorou. Chorou muito, mas escondido, bebendo vinho, enfiado na adega, não queria comer e  nem ver ninguém. Só voltaria ao trabalho três dias depois, mal olhando na cara dos empregados, filhos dos vizinhos.
Marcos trabalhava muito, nem via as filhas crescendo, sabia que estavam bem nos estudos, teve o dia de se despedir quando foram, uma a uma, estudar na cidade, depois para as faculdades, despesas a mais no controle do italiano. Vieram os dias das formaturas, as festas, mais despesas, enfim os estágios, os empregos, os maridos, os netos, Marcos virou Nono. Cabelos brancos e novas doenças.
As filhas queriam assumir os negócios, Nono não quis, porém a doença lhe colocou na cama e as mulheres assumiram a produção. Mudanças urgentes, capacitação dos empregados, aquisição de novos equipamentos, criação de novos produtos, uma diversificada agroindústria, um selo próprio, expansão da distribuição, novos mercados, e em poucas décadas um crescimento vultoso da empresa familiar. O sucesso das filhas.

Nono Marcos, cercado de bisnetos, viu a vida acabar, entendendo que seus preconceitos foram superados. Acreditava em Deus, esta era sua crença na vida, e pediu perdão pelos xingões, e morreu rindo das suas atitudes. As filhas, lindas, ao seu lado. 
O BOI           (Wlady)

Barroso era um boi não muito velho, que vivia na pampa gaúcha, filho de um touro brabo que era pai de uma boa manada na região. Criado pela mãe, a vaca Joana, da Fazenda Jacarandá, lembrava de ser amamentado nas manhãs frias do inverno rígido daqueles pagos sulinos. A geada branqueava os campos que aos poucos eram aquecidos pelos raios do sol quando este aparecia.
Barroso se criou pastando nestes campos, fugindo das chuvas nos matos escassos da redondeza, namorando com as novilhas da sua idade. “Sacanagem me fizeram quando eu era terneiro, me caparam, tiraram minhas bolas, não posso gerar filhos”, reclamava Barroso para sua amada Carminha, uma linda vaca que pastava com ele, todos os dias, depois comiam sal e bebiam água no açude. Nestas horas se tocavam, se beijavam com as línguas molhadas. Todos sabiam que namoravam.
Barroso olhou para o lado e reconheceu um a um dos bois que estavam no curral do frigorífico. Tristes. Esperando a hora de serem abatidos. Era o destino histórico, naturalizado pelos humanos, de matar os bois e fazer consumo da carne, do couro, das tripas, dos chifres, das patas, da merda que estava no bucho. O homem, montado em seu cavalo, conversava com os bois, parecia que se entendiam, e se entendiam, com o olhar, o olhar dos bois a caminho da morte, parece que sabiam seu destino, pensava o homem, e os bois se movendo, indo um a um, para o abate, para virar bife, churrasco, carne de panela, filé ao molho, milhares de pratos servidos nas mesas da cidade e das fazendas.
No Brasil o rebanho bovino está em torno de 200 milhões de bois, vacas e touros, número maior que o da população humana, em torno de 195 milhões de pessoas. Existe mais de um bovino por humano, nesta terra continental de língua portuguesa.
Barroso encontrou seu irmão Betinho, pêlo branco, bonito, o mais visado pelas vacas da fazenda. Tinha um olhar alegre, corria pelos campos, brincava com os outros bovinos desviando das árvores no mato com extrema habilidade, sem quebrar um galho. Orgulhava-se disso. Não era gordo, comia pouco e mantinha a forma esbelta, por isso era admirado pelas vacas. Sonhava em viajar para uma Exposição, ganhar prêmios, ser fotografado, aparecer como grande campeão nos jornais e na TV. Quando estava nas proximidades da casa da fazenda, via pela janela a TV. Sabia que nas manhãs de sábados passava um programa rural com reportagens sobre as feiras de gado. Mas este privilégio era só dos touros, os escolhidos, os fabricados pela cabanha, seu destino era outro, virar churrasco, quem sabe numa festa na Expointer. Que ironia. Nada podia fazer Betinho. Estava ali, no curral, esperando na fila para morrer, já sem o olhar alegre, agora com os olhos caídos, tristes.
“Êra boi, êra boiada”, gritava o peão em seu cavalo, com seu chapéu tapeado, com seu relho de couro trançado, batendo nos bois, movimentando a boiada para o funil da mangueira, para a casa de abates, onde seriam executados, pendurados em ganchos, cortados em pedaços para a indústria de alimentos dos humanos. Era o fim de todo boi. As vacas ficaram no pasto, tinham que dar leite e novos terneiros para os humanos. Mas também virariam churrasco um dia. Era a regra.
Betinho despediu-se de Barroso e entrou na fila, estava chegando a sua hora, ele sabia, o relho batia, o cavalo lhe empurrava, ele não queria entrar, berrou, se deitou, chegaram mais homens, agarraram o boi forte, até que abateram. As últimas palavras que Betinho ouviu foram: “Cuidem para não manchar o couro deste com sangue, é bem valioso no mercado, branquinho, muito lindo.”
Barroso fugia para o fim da fila, os peões metiam os cavalos pra cima deles e gritavam, tinham que fazer o serviço, estava chegando uma nova manada, precisavam fazer andar a fila, o consumo estava crescido, sociedade moderna, hábitos consolidados, mais dinheiro circulando em todas as classes, mais compra de carne, e aquele frigorífico abatia em torno de 700 animais por dia, era um movimento intenso, empregava mais de 800 pessoas, trabalhadores e trabalhadoras, humanos, comedores de bois, diariamente, uns mais, outros menos, mas comiam bois, todos os dias do ano.
No fim da mangueira Barroso, o boi filho da vaca Joana, encontrou um velho amigo das coxilhas, o boi Pedrão, boi velho, estava sendo poupado há anos, mas agora chegou sua hora, antes que a carne ficasse muito dura e desse prejuízo. Pedrão cumprimentou Barroso com seu olhar triste e perguntou pelos irmãos. “Os que não viraram churrasco, em breve estarão virando nos espetos de churrascarias por aí”, disse Barroso ao velho amigo.
O cavalo avançou, os dois bois foram empurrados, Barroso na frente, trancou as patas no chão, o relho bateu, ouviu os gritos dos peões, sentiu a martelada na cabeça, o choque, a faca no sangrador, no cérebro começaram a passar as imagens do campo verde com suas flores amarelas, as vacas e ovelhas pastando, os riachos, o barulho da água, a lambida da vaca amada, a escuridão, o fim da existência. Estava abatido. Sendo carneado, levado nos ganchos, cortado em partes, uma trajetória histórica, naturalizada... pelos humanos.

Lá no campo, como quem soubesse do destino de mais estas duas crias, a vaca Joana pastava triste, olhando para o chão, catando trevos de quatro folhas.
ADRENALINA            (Wlady)


Carlos Valente olhou para o infinito e ouviu o som da chuva e o tumulto no céu com raios e trovões. Limpou o rosto e seguiu caminhando no meio daquele temporal. Não podia parar, nunca, tinha que chegar rapidamente a um lugar mais seguro do que aquele descampado escuro. Não adiantaria parar, pensar outras alternativas, não havia outras alternativas, a decisão era única, caminhar, correr, para algum outro lugar. O gado estava escondido no meio do mato, naquela escuridão interrompida pelos relâmpagos que clareavam a terra. Valente enfrentava os pingos pesados e frios da chuva intensa, mastigava a água que caía sobre seu rosto vindo dos cabelos encharcados. Não desistia, aumentava os passos, corria um pouco, e quando cansava, parava e sentava no chão para respirar. Não havia fome, apenas pressa. Tinha que chegar a algum lugar. Tinha que voltar para a cidade, precisava ver as luzes das casas e prédios e ruas, precisava encontrar pessoas... Não podia desmaiar, levantava, sacudia os braços e a cabeça, mexia os ombros, arregalava e piscava os olhos, movimentava as pernas e reagia a musculatura do corpo ensopado para seguir adiante. Haveria de encontrar um abrigo provisório, acreditava, enquanto caminhava apressado na escuridão da pampa. Nenhum cavalo por perto para pegar o animal e sair galopando, nenhum carro abandonado para se proteger até o amanhecer, nenhum galpão caindo aos pedaços no caminho sem fim. Caminho sem fim. Caminho sem fim. Isso. Caminho sem fim a vida de Carlos, uma vida provisória, sem fim para as angústias, para as inquietações da mente, não do coração, Carlos não acreditava nesta metáfora do coração, para ele tudo era mente, carne, osso, músculos, órgãos, veias, células, átomos, o tremor do corpo molhado, o arrepio na espinha, o frio, a cegueira... O corpo em movimento constante para sobreviver... Sobreviver para quê? Viver para quê? martelava a pergunta na mente de Carlos ensopado, claro, uma sopa, sopa de legumes, com frango, com pedaços de carne, com triguinho, bem quente para esquentar o corpo gelado, imaginava Carlos em seus passos sem fim, passos sem fim, passos sem fim os da humanidade, os humanos desceram das árvores e caminham há mais de 3 bilhões de anos na terra, girando o planeta, inventando coisas, caminhada sem fim, eterna, da humanidade, de Carlos Valente, batendo dente, de frio, congelando na madrugada... madrugada sem fim...
O sol bateu nos olhos de Carlos, deitado na relva molhada. Acordou lentamente, com dor por todo o corpo, dor na cabeça... e uma incrível dor nas pernas. Tentou se levantar mas não conseguiu. Faltou força. Fechou e abriu os olhos. Deitado olhou a estrada embarrada, as coxilhas ao longe, ao longe os montes verdes e as matas verdes, as ovelhas e vacas, pastando, lentamente. Sede. A boca estava seca. Muito seca. Se arrastou até uma poça de água da chuva e bebeu com desespero. Água embarrada. Bebeu até se satisfazer.
Como estará a mulher distante? Como estará a filha de sete anos? Como estará o filho de 12 anos? Como estará o pai doente? E a mãe que tanto lhe cuidara na infância e adolescência? E o irmão, sobreviveu? Lembrava das contas do fim de mês para pagar, aluguel, luz, água, internet, cartão, prestação do carro... tudo em nome da mulher, a esposa parceira de todas as horas, amiga, companheira, amante, mãe dos seus filhos, cúmplice da existência... Como estarão os companheiros de trabalho? Como chegaria até seu povo? A chuva persistia e anunciava grande enchente na região. Carlos, caído, molhado, reunia forças para levantar o corpo, lembrava da última ação de trabalho para conquistar o dinheiro para entregar para a mulher, mais uma operação perigosa... Carlos impulsionou o corpo para cima, uma dor total nos ossos úmidos e enfim a caminhada sem rumo definido. Passos lentos. Passos lentos. Passos lentos.
Tiros, sirene, polícia correndo, carros fugindo, ação rápida. Carlos sai de dentro do prédio do banco da pequena cidade do interior com uma mochila. Entra em um carro e foge em alta velocidade para a saída da cidade. Perseguido por um carro da polícia consegue tomar certa distância. O motorista, o irmão, tomado de adrenalina, acelera muito e cuida no retrovisor a distância dos perseguidores que atiram contra eles. Carlos examina a mochila, cola no corpo e vê seu irmão perdendo o controle do carro em uma curva, rodopiando no asfalto, capotando várias vezes, seu corpo sem a proteção do cinto salta pela janela, tudo muito rápido, em segundos, voando, caindo no barranco, a mochila grudada no corpo... rolando pela relva, caindo em uma pequena lagoa de beira de estrada. Depois do estrondo e barulho de ferros arrastando no asfalto, veio o silêncio total que foi quebrado pelo som da sirene da polícia. Carlos Valente mergulhou. Mergulhou, mergulhou, mergulhou centenas de vezes naquela tarde, até o anoitecer. Quando voltava à superfície, ouvia as vozes dos policiais que cercaram o carro capotado. Ficou escondido na água todo o tempo em que os policiais procuravam pelos assaltantes que haviam atacado o banco cooperativo da pequena comunidade. Um pegaram dentro do carro. Outros foram presos horas depois em uns matos próximos da cidade, em outro carro. Faltava um. As testemunhas disseram que eram quatro homens, em dois carros.
Quando anoiteceu e o movimento cessou, Carlos saiu da água, quando começou a chuvarada, quando começou sua caminhada, com o corpo doendo, com pouca roupa, molhada, e com a mochila nas costas. Não desistiria. Tinha que levar adiante sua salvação. Precisava sobreviver. Caminhara na escuridão, no meio da chuva, até desmaiar, até ver seus olhos cegados pelo sol da manhã. Precisava continuar fugindo, pelo meio do campo, atravessando cercas, até um abrigo provisório. Encontrou uma tapera, uma casa velha, abandonada, com algumas paredes caídas, com um teto de zinco enferrujado, ao lado de umas laranjeiras. Antes de deitar e tentar se aquecer com uns sacos de estopas atirados em um canto, Carlos catou umas laranjas que devorou com os dentes. Ficou deitado. Encolhido. Enrolado nos sacos, por horas. A mulher, distante, aflita. A filha, crescendo, cada vez mais bonita. E o filho, um rapazinho, esperto. Bom de matemática. Queria ser engenheiro. Diziam que um engenheiro, em São Paulo, pode ganhar mais de 20 mil por mês. O pai, idoso, na luta contra um tumor maligno no pulmão. O velho fumou a vida toda, enquanto vendia sua força de trabalho no cais do porto da capital. Aposentou-se por idade, com um salário mínimo. Dependia exclusivamente do atendimento médico público, enfrentava a burocracia e a demora do tratamento, estava morrendo, ao lado da velha guerreira que criou oito filhos num barraco na vila. Todos trabalhadores. Garçons, mecânicos, torneiros, secretárias, cozinheiras... Uns viraram bandidos. Assaltavam bancos. Mas só bancos, dizia Carlos para a mulher que administrava o orçamento familiar. Explodiam caixas eletrônicos. Entravam nas agências do interior, onde o policiamento era mais fraco. Mostravam as armas para amedrontar. Carlos salientava que nunca atirou em ninguém. Nunca foi preciso. Já vi colegas atirando em guardinhas, contava para a esposa. Argumentava que dinheiro dos bancos tinha seguro, era uma mutreta entre os grandes, não prejudicava o povo, que era até revolucionário, tipo Robin Hood, tirar dos ricos para distribuir para os pobres, os pobres dele, do Carlos Valente, a mulher pobre, os filhos pobres, os pais pobres, os irmãos pobres, as amantes pobres, os pobres donos de mini-mercados e botecos na vila onde viviam, pobres. Pobres, mas trabalhadores! Tinham este orgulho. Trabalhadores. Escravos de um sistema que gerava a desigualdade constantemente. Era um profissional do crime, do enfrentamento contra o estado e a burguesia dominante, profissional do desvio de conduta, sobrevivente da desigualdade social e econômica. Um mutante na selva de pedra ou solto no campo, fugindo no campo, molhado, quebrado, vulnerável, deitado numa tapera, casa velha caindo aos pedaços de tempo.
“Acorda, homem!”
“Acorda, cara!”
“Tu não tá morto, tá?”
Carlos Valente abriu um olho e agarrou num golpe só, certeiro, o rapazinho magro que o abordava. Mesmo com os ossos doídos, teve energia para se defender de um imaginário perigo. Não queria ser preso. Não queria voltar para as celas dos presídios imundos do Brasil. Esteve preso, por roubo a bancos. Trabalho arriscado. Passou dois anos na cadeia. Pra sair teve que pagar caro, ainda estava pagando, assaltando para a organização, pois não levava todo o dinheiro roubado dos cofres dos bancos e caixas eletrônicos. Vendendo a força de trabalho também, como o pai fez no cais, como outros milhões fazem todos os dias no mercado, vendem o principal da vida, o tempo de existência. Agarrou e deitou o alemãozinho frágil que lhe acordou das lembranças.
“Tu tem carro? Tu tem carro?” perguntou Carlos ao rapaz assustado.
“Sim. Sim. Mas quem é o senhor, deitado aqui nesta tapera? Pensei que estivesse morto. Entrei para catar umas laranjas...”
“Que merda! Me escuta! Preciso sair daqui, estou muito doente. Teu carro é bom?”
“Mais ou menos. Eu vou lhe ajudar, mas me solte, preciso respirar.”
“Ok. Me ajude a levantar e me leve para o carro. Meu carro fundiu o motor lá adiante, vim caminhando, peguei a chuvarada, achei este abrigo, cansei mesmo!” mentiu Carlos Valente enquanto era conduzido. Meteu a mão dentro da mochila, pegou sua pistola e duas notas molhadas de 100,00. Olhou para o jovem à sua frente e disse: “Agora você vai fazer uma viagem longa comigo. No primeiro posto tu enches o tanque com este dinheiro. O troco é teu. Antes que alguém retrucasse esta ordem, Carlos apontou a pistola para o alemãozinho mais assustado ainda. “Entendeu?” Subiram no carro, abasteceram no posto mais próximo e seguiram rumo à capital. No caminho comeram pastéis com refrigerantes em lata, comprados no posto. Carlos meteu a mão dentro da mochila e tirou duas notas de 100,00. Colocou no painel do carro. Mandou o sequestrado ir entrando nas ruas e becos até chegar num determinado local. “Para o carro aqui mesmo!” e desceu. “Te manda, antes que tu morra!” O carro sumiu nas ruelas da vila. Carlos olhou ao redor, já estava escuro, e percebeu a calma de sua rua, uma rua calma naquela vila, a casa do pai lá no fim da rua, ou seria o início da rua, sabe-se lá, pela numeração dava para concluir, bateu na porta e a mãe abriu, assustada, disse que o irmão estava todo quebrado num hospital, cercado de guardas. Mas ele precisava ver o pai, trocar um olhar, dar um abraço, perguntar como ele estava de saúde, podia ser a última vez e fez isso, correndo o risco de ser preso, depois abraçou a mãe, pegou a mochila, tirou 30 notas molhadas de 100,00, deu para a velha e foi. Foi até a casa mais adiante, a sua, entrou pela porta da frente, beijou a esposa aflita, a menina bonita e o filho que vai ser engenheiro. “Amo vocês!” Pegou 100 notas de 100,00 e entregou para a mulher. “Administra. Me encontra amanhã no centro, naquele nosso hotelzinho de fuga, às 11. Quero dormir. Chama um táxi agora, vou embora, a polícia está chegando. Quero outro beijo. Beijão. Amanhã matamos a saudade”. Pegou a mochila e partiu. Pilhado, cheio de dores, adrenalina a mil, que trabalho duro, perigoso, um dia cai ou morre, sonhava com aposentadoria, talvez um dia, teria que descontar para a previdência como autônomo, tinha que sair daquela vida, daquela vila, já tinha uma poupança, mas só quando o pai morrer, vai morrer um dia, e deixaria a mãe com a irmã, levaria a mulher e os filhos, mas não podia se demitir, podia mudar de vila, de cidade, era prudente, quem sabe morar no litoral, nada mal, não poderia visitar o irmão, a organização já sabia que ele sobreviveu a esta operação, estava atrás da parte dela, ele ia entregar, não queria ser executado pelos colegas, sabia pra quem entregar a mochila, desceu no centro, entrou no hotelzinho, pagou adiantado pra uma semana, saiu, comprou remédios, comeu, bebeu uma ceva, voltou para o quarto com banheiro e tomou um banho quente. Voltou para a cama e apagou.
Manchetes de jornais, tv e rádios davam conta de que mais uma quadrilha de assaltantes de bancos tinha sido presa; Porém, o dinheiro não tinha sido recuperado. Estava na mochila, com Carlos, numa espelunca, embaixo da cama.
“Eu nunca atirei em ninguém, ainda não foi preciso”, disse Valente para sua mulher, às 11 e 30, deitados e abraçados, sob as cobertas, matando a saudade sexual. Nesta hora, a adrenalina estava controlada. Ficar abraçado e conversando sobre os filhos, os projetos, a vida, com aquela mulher, era mesmo agradável, queria eternizar aquele momento, congelar o tempo, mas não dá, cada segundo é finito. Carlos beijou a mulher mais uma vez. Estava exausto de tanto amar. Aliviado. Mas estava sendo perseguido pela investigação policial. Era perigoso ficar muito tempo no mesmo lugar. A mulher tomou um banho, se vestiu e deixou o quarto depois de se despedir de seu homem. Deixou o celular para seu homem, o dele tinha molhado e estragado, compraria outro, em seguida, no caminho, indo para casa cuidar dos assuntos, esperar pelo contato com ele, a qualquer instante, imprevisível, vida provisória, mas era a vida que tinha, tensa, mas com a bolsa cheia de notas de 100,00, molhadas. Tinha que fazer render. Não sabia quando o marido voltaria a trabalhar. Estava de quarentena. Perseguido. Quem sabe viajaria para longe, para dar um tempo. Ninguém sabe. Nem ele, muito menos eu, pensava Maria, pegando o ônibus, secaria as notas e depositaria aos poucos, todos os dias, numa conta poupança. Carlos levantou e foi dar uma banda pela cidade. Se mexer. Era preciso. Caminhar anônimo pela metrópole, comprar um óculos de sol, cortar o cabelo, fazer a barba, comer nos restaurantes, ir ao cinema para passar o tempo, sempre com sua mochila ainda úmida. No meio da multidão. Ninguém desconfiava quem era aquele cidadão.

“Me serve um café preto, bem forte, faça o favor, com adoçante.”
Reamanhecer na praia



Rui  era um pobre homem gordo. Pobre porque ganhava pouco. Gordo por ser barrigudo. Pai de 7 filhos. Todos menores. O mais velho tinha 16 anos. O mais novo tinha 2. E todos eram homens. Um fato real e estranho. Uma família onde os 7 filhos nasceram machos. Humanos machos. E a mãe, dona Sônia, sempre sonhou em ter uma menina, uma humana fêmea, para criar e enfeitar. Para arrumar toda de fitas e vestidinhos. Depois da sétima tentativa, quando nasceu Bruninho, o caçula, dona Sônia disse: "chegou! Não tento mais."
            Rui acordou naquela manhã com os primeiros raios de sol que entraram pela telinha da barraca, no câmping da praia de rio. Foi até uma torneira na grama e lavou o rosto. Despejou água nos cabelos e deixou escorrer pelos peitos, pela barriga. Lembrou de quando era novo, tinha  seus 16 anos, e acampava naquele local de areias brancas e água azul quando  o céu estava azul. Sacudiu a cabeça, lançando água, e voltou à sua realidade quando um dos filhos saiu da barraca. O sol estava nascendo, parecia uma bola de fogo, saindo do horizonte, de dentro do rio. O mundo reiniciava para Rui e sua família. Mas era verão. Ele estava, enfim, de férias. Depois de ficar 12 anos "vendendo" suas férias para a empresa onde trabalhava como contador, resolveu parar um pouco. E como homem criado no pampa, não aguentou uma semana na beira do mar. Aquele barulho e aquele vento constantes mandaram Rui de volta para a fronteira-oeste do Rio Grande do Sul, o sul do sul do Brasil. Lá estava Rui, com seus 7 filhos, sua mulher, sua barraca e seu Opala ano 80. Não morava naquela cidade de praia  de rio, mas tinha passado bons momentos naquele lugar quando jovem. A tranquilidade do rio descendo calmamente, a sombra do câmping, as opções de lazer e esporte para os filhos... poderiam dar o descanso merecido para o pobre Rui Cavallari. E ele, naquela manhã, lavou o rosto do pequeno Mateus, de 4 anos, colocou água para esquentar e começou a preparar um chimarrão. Dona Sônia, com o barulho na barraca, começou a se levantar. A vida recomeçava para os Cavallari naquela manhã de janeiro.
            Depois do café Rui disse que ia caminhar na areia, na beira da praia, até o quartel que se postava nas margens do rio. Na volta traria carne. Não carne de peixe, pois não era costume no local, comer peixe. A carne era de boi, para dona Sônia fritar  uns bifes com cebola.
            Rui caminhou até o quartel, pela beira do rio, na areia branquinha como neve, e na volta parou num açougue. O local era bem limpo, todo azulejado, e as carnes ficavam dispostas em balcão refrigerador todo de vidro. Atrás do balcão uma mulher morena, alta, aparentando uns 40 anos, atendia com muita gentileza e meiguice a sua tradicional clientela. O açougue Santa Maria era famoso no local, principalmente no verão, quando os campistas buscavam ali costelas, picanha, linguiça, carvão e outros ingredientes para um churrasco. Dona Marilú, sempre com seu sorriso natural, cuidava e administrava bem seu estabelecimento comercial que era ponto de compra de boa carne no bairro Praiano. A higiene era o ponto alto da casa de carnes que também vendia leite, frutas, legumes, pães, cucas, bolos e outras comidas. O sonho de Marilú  era ter um restaurante, ou um supermercado. Sonhava em ter os dois. A mulher sonhava alto e para isto seu marido trabalhava sem parar, comprando e vendendo gado, buscando sempre mais lucro nas ofertas e negócios que lhe apareciam. Já haviam comprado aquele terreno, construído uma casa com 3 quartos, cozinha, sala, banheiro, varanda... e um salão comercial. O marido preparava os cortes de carne de manhã bem cedo, antes de sair para os negócios, antes de visitar sua pequena propriedade rural de 25 hectares onde possuía algum gado, porcos, galinhas, perus, coelhos e plantava melancia, milho, laranja, abóbora, tomates e alfaces e cenouras. Mário J. Leivas  foi menino de rua, saiu do nada, e com a força de seu trabalho construiu uma família que prosperava, diziam os vizinhos, como exemplo. Graças a dona Marilú, com sua economia e educação, concluíam as vizinhas.
            Rui entrou na Casa de Carnes Santa Maria e teve a impressão de conhecer Marilú. Morena, alta, sorriso permanente, brilho no olhar, gentil e meiga. Aquela imagem era inconfundível. Marilú Leivas era mesmo a Malu de 20 anos atrás. Era aquela menina magra que dançava graciosa nas festas do bairro Praiano há 20 anos, quando ele passou um carnaval nesta praia. Ele pediu um pedaço de carne para bife e ela o atendeu com a naturalidade de sempre, sem perceber quem estava na sua frente. Pesou, enrolou, fez a cobrança e deu o tíquete da caixa registradora. Ao entregar o troco ao cliente, seus olhos passaram pelo rosto dele. Percebeu que aquele olhar não lhe era estranho. Mesmo diferente, gordo, com a face bochechuda, Rui mantinha uns traços do jovem Rui de 20 anos atrás, quando saía de sua cidade, principalmente no verão e no carnaval, para passear na cidade vizinha que possuía a mais famosa praia da região pampiana. Malu entregou o troco e já começou a atender outro cliente que estava na fila. Rui, ainda perplexo com o reencontro depois de 20 anos, agradeceu e saiu em direção ao camping. No caminho não parou de pensar no passado, na  noite em que conheceu Malu, no verão distante em que suas vidas se encontraram brevemente.
            Passaram-se 3 dias e sempre Rui se dirigia até o açougue Santa Maria pela manhã para  comprar carne. Um dia era costela, no outro era  frango, enfim, todos dias do resto de suas férias, Rui  iria  frequentar o estabelecimento comercial de Marilú e J. Leivas.
            A mulher reconheceu e lembrou de Rui já na segunda aparição dele. Deu um sorriso maior que o de costume, silenciosamente, quando lembrou daquele verão e daquele homem. Muito discreta, não perguntou  nada e não fez nenhuma menção sobre o passado. Como uma profissional, apenas atendeu seu cliente até que no quinto dia ele tomou a iniciativa de falar no assunto para dona Malu.
            A conversa foi numa segunda-feira, por volta das 9 horas, dia calmo quando o açougue estava praticamente vazio. Marilú preparava o depósito bancário para sua filha subir até o centro da cidade onde ela guardava num banco tudo que faturava. Era o movimento do fim de semana que estava nas mãos de Malu e ela separava e desamassava as notas.
            Rui entrou, deu bom dia, disse que estava em dúvida sobre qual a carne que levaria para o almoço dos filhos e ela respondeu dizendo que ele poderia ficar a vontade e escolher com calma. Rui olhou bem nos olhos de Malu e perguntou se ela o tinha reconhecido. Ela, naturalmente, sem parecer surpresa, balançou a cabeça, afirmativamente. Ele, sorrindo, perguntou como ela estava, depois remendando foi dizendo que ela continuava muito linda, expressiva e elegante. Ela, sorrindo, agradeceu o elogio e disse que estava  muito  bem de vida,   trabalhando bem, com 2 filhos, uma mocinha de 14 anos, e um menino de 8. Que tinha realizado um bom casamento e que o marido era muito trabalhador e carinhoso. Rui pensou que só um louco não seria carinhoso com uma mulher como Malu.
            Ela perguntou sobre ele e Rui falou de seus filhos, de sua profissão e da vida monótona que levava há anos, indo do escritório para casa, da casa para o escritório, e dos fins de semana com velhos amigos e familiares, no churrasco, indo ver futebol no pequeno estádio da sua cidade... ou simplesmente de ficar  vendo TV e  bebendo cerveja, vendo o tempo  passar. É a vida dos humildes! exclamou Marilúcia, salientando que a vida dela também era uma rotina de comércio e vida de dona de casa, mãe de família.
            Rui, que já tinha decidido sobre qual carne levaria, disse que não dava para se queixar da  vida. Salientou que tinha gente em situação bem pior, e que a tragédia na família era bem mais insuportável do que a rotina.. Malu concordou e perguntou séria se ele teve alguma tragédia na família, ao que Rui respondeu sorrindo que graças  a  Deus não.
           
            À noite Rui ficava jogando dominó e baralho com seus filhos até que eles  iam caindo de sono aos pouco. O filho mais velho saía para passear com os amigos e amigas de camping. Depois de colocar os menores nos quartos das barracas Rui  assistia a programação da TV    ao lado da esposa gorda como ele, porém pensando no sorriso e na beleza de Malu. Aquela mulher se mantinha magra e com a pele de seda como nos velhos tempos, pensava silenciosamente. A esposa ia dormir e Rui ficava  olhando a lua, saboreando o silêncio da praia e o suave barulho do rio. Imaginava para si uma vida diferente que poderia ter acontecido. Criava na sua mente um mundo novo onde ele aparecia mais magro, mais elegante, passeando com Malu no centro de Buenos Aires, visitando cassinos e casas de tango, viajando em bons  carros e findando a noite num hotel de luxo nos braços magros e morenos de Malu. Dizia para si mesmo que tudo isto era mera fantasia de um medíocre homem provinciano, e que a realidade era bem outra. Passou toda a última semana de suas férias neste embalo de ter rápidas conversas e trocas de olhares com Malu, no açougue, pela manhã, e de passar o resto do dia e um pedaço da noite sonhando com a ex-namorada de 20 anos atrás.
            Numa manhã, quando ele sentiu estar mais íntimo, perguntou timidamente se ela chegou a ter saudade após ele ter desaparecido naquele verão de 1977.  Ela disse que sim, apenas nos primeiros meses, e que logo depois conheceu a pessoa que acabou se transformando no seu esposo. Disse que depois acabou esquecendo o antigo namorado de carnaval. Depois que casei não tive mais tempo para bobagens!, disse Malu, embalando a carne.
            Eu nunca esqueci daquele fim de carnaval na praia, exclamou Rui com o olhar distante. No fim não conseguimos concluir nossa festa como queríamos. Abraçamos-nos tanto, nos beijamos com desejo incontrolável, rolamos na areia branca e gelada, e quando fomos realizar nosso tão esperado ato sexual, a tua tia apareceu gritando, te procurando, te buscando na madrugada. Acho que foi minha maior frustração. No outro dia tive que viajar para o norte do país onde meu pai sargento do Exército foi transferido e onde morei por 3 anos. Sonhei muitas noites contigo até conhecer outras mulheres, inclusive minha esposa. Rui foi interrompido com o barulho de uma camionete que encostou na frente do açougue. Era o esposo de Malu. Deu um bom dia ao único cliente presente no recinto e trocou algumas palavras de serviço com a esposa enquanto Rui escolhia um pedaço de costela. Faria um churrasco naquele domingo para se despedir dos amigos, pois viajaria na segunda bem cedo. As férias estavam chegando ao fim e na terça-feira ele já deveria se apresentar na empresa.
            No fim do dia, após a churrasqueada, dona Sônia começou a arrumar algumas malas no carro. O marido e os filhos maiores ajudaram. No outro dia era só desarmar a barraca, colocar tudo no reboque e pegar a estrada. Era a última noite daquelas férias. Rui bebeu mais cervejas que de costume, para acabar com seu estoque de viagem, e quando todos foram dormir ele foi passear na beira do rio, se despedir da praia noturna e do rio silencioso. Caminhou uns duzentos metros na areia gelada e branquinha quando avistou  um vulto sentado na beira dágua. Percebeu que era uma mulher e continuou sua caminhada, com uma latinha de cerveja na mão, de pés descalços, com a barriga saltando para fora do calção e com olhar fixo no vulto imóvel. Ao chegar perto da mulher viu que era Malu. Na hora não acreditou. Por ter bebido tanto achou que estivesse delirando. Que era uma alucinação de bêbado ou coisa parecida. Quando ela se virou para ver quem se aproximava, tranquilizou-se ao perceber que era um conhecido. Ele ainda sem acreditar naquele instante, pediu licença e sentou-se ao lado dela. Malu estava com um vestido de algodão branco decotado. Parecia que tinha vindo de uma festa. Os sapatos estavam ao seu lado e as pernas longas e morenas salientavam-se com o brilho da lua. Rui acariciou as pernas da mulher, mas ela agarrou carinhosamente suas mãos e as retirou das pernas. Ele olhou nos olhos de Malu e tentou dizer alguma coisa antes de tentar beijá-la. Malu mais uma vez se esquivou da tentativa do ex-namorado e não aceitou sua proposta de realizarem 20 anos depois o ato sexual que haviam  interrompido naquela distante noite de carnaval. Rui disse que este era o momento e que depois disto queria apenas morrer. Terminou a cerveja e Malu falou que este não era o momento deles e que suas vidas já estavam definidas. Ela não queria quebrar a normalidade na sua família e que não tinha mais idade para aventuras e ilusões. Confessou que era feliz na mediocridade e na rotina. Não reunia forças para fugir deste mundo. Deixava a ilusão para os filhos, que estavam crescendo. Não queria ser um mal  exemplo   para a  filha de 14 anos e aceitava o conservadorismo como opção de vida. Há 20 anos  eu te amei e te desejei, Rui, disse sorrindo. Depois disso Malu levantou-se e saiu caminhando lentamente pela areia, até sumir aos olhos de Rui. O gordo deixou seu corpo pesado cair na areia e dormiu ali mesmo, anestesiado de cerveja, sem sentir as picadas dos mosquitos.
            Na manhã seguinte, quando o sol começava espalhar seus raios, Rui foi acordado pela algazarra dos filhos  menores que lhe jogavam areia e água,  tentando acordar o pai com cócegas e outras brincadeiras. Rui levantou, correu até o rio, mergulhou  e nadou  um pouco para curar a ressaca do domingo.
            A vida deveria continuar e as fantasias Rui prometera a si mesmo deixar para os momentos fugazes de cafajestada e orgias de auto-afirmação proporcionadas por mulheres profissionais da libidinagem.
            Mergulhou mais uma vez  e foi ao encontro dos filhos que estavam  entrando no rio em sua direção.
            Em poucas horas estaria de volta a seu doce e monótono lar. Longe do rio, longe do mar...
            Na viagem, o filho mais velho  contou que conheceu uma menina  neste verão ... morena, magra, pernas longas...um belo sorriso... estava apaixonado...
            A vida, naturalmente, dava voltas no pampa nosso de cada dia.
            Amanhecia.


ESCRAVOS DAS GUERRAS

Guerras não são novidades na história da humanidade. Desde as civilizações primitivas, passando pela antiguidade e chegando à modernidade, h...